ChronosLab: Onde as Humanidades se encontram com a Inteligência Artificial para combater a desinformação e explorar o passado

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Na encruzilhada entre a tecnologia e as ciências humanas, o Laboratório de Humanidades Digitais (ChronosLab) do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora está a afirmar-se como um polo inovador de investigação transdisciplinar. Unindo investigadores de áreas como a história, a linguística, a sociologia ou a ciência dos dados, este laboratório promove projetos que cruzam saberes e técnicas digitais com uma leitura crítica e humanista da sociedade. Dois projetos em curso — HYBRIDS e MONSOON — são testemunho dessa ambição, lidando com desafios tão distintos como a desinformação online e a compreensão histórica dos sistemas coloniais.

Face à crescente proliferação de desinformação, discurso de ódio e notícias falsas online, o projeto europeu HYBRIDS surge como resposta urgente. Financiado pela União Europeia e pela UK Research and Innovation (UKRI), este projeto internacional — com 14 instituições de sete países — aposta na criação de sistemas de inteligência híbrida, combinando o raciocínio humano com a aprendizagem automática para detetar e combater narrativas falsas que minam as sociedades democráticas.

Na prática, o HYBRIDS está a explorar formas inovadoras de aplicar o processamento de linguagem natural (PLN) e algoritmos de aprendizagem profunda (deep learning) para analisar grandes volumes de dados textuais, desde posts em redes sociais até artigos jornalísticos. O objetivo é criar ferramentas  com capacidade de analisar discursos e identificar abusos e desinformação no uso da linguagem.

“A inteligência artificial (IA) é incrível a conhecer a linguagem humana e está a melhorar cada vez mais. Até há alguns anos atrás, toda a leitura de textos e toda a sua compreensão tinha de ser feita exclusivamente por humanos. Atualmente, podemos colocar métodos de IA ao nosso dispor para fazer análises mais profundas e a ter um corpus de dados maior”, destaca Erik Marino, bolseiro de investigação do projeto HYBRIDS e estudante do programa de doutoramento em História da Universidade de Évora.

“A difusão de teorias da conspiração pode ser extremamente prejudicial e conduzir a resultados dramáticos, daí a necessidade de proteger as nossas próprias democracias, recorrendo, para tal, a tecnologias de IA”, alerta Erik Marino. “Especificamente, a minha investigação lida com as chamadas teorias da conspiração de substituição da população, no fundo, todo o tipo de narrativas que afirmam existir um plano onde a população europeia deverá  ser substituída por migrantes. Como se tratam de mentiras, treinamos as tecnologias para que compreendam estas narrativas. Através de uma combinação de dados portugueses, espanhóis e italianos,os sistemas de IA detetam estas narrativas e estudam a sua evolução ao longo dos últimos 30/35 anos e comparam os diferentes contextos”, explica o Bolseiro de investigação do projeto HYBRIDS.

Enquanto o HYBRIDS olha para o futuro da democracia digital, o projeto MONSOON mergulha no passado colonial, utilizando também ferramentas digitais de ponta. Financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, o projeto de curta duração explora as dinâmicas internas do Estado da Índia português durante a União Ibérica (1580–1640), com base nos célebres Livros das Monções — volumosos registos da comunicação entre Goa e Lisboa. Através do MONSOON, tem sido possível tornar acessível e pesquisável aquela que é a mais relevante coleção documental para o estudo do Império Português no Oriente.  O projeto não só digitalizou e disponibilizou os dez volumes dos Livros das Monções impressos (1605-1624), como criou um sítio web interativo com funcionalidades de pesquisa avançada.

“Falamos de um elevado volume de informação ao qual era impossível aceder facilmente. Nós conseguimos recolher dados sobre todo o tipo de temáticas numa área geográfica que vai desde Moçambique até ao Japão e que aborda religião, política, organização social...”, realça Ana Sofia Ribeiro, investigadora do CIDEHUS da Universidade de Évora. 

O MONSOON propõe-se a mais do que a reconstrução cronológica de eventos: pretende mapear redes de poder, relações informais entre agentes coloniais e dinâmicas entre diferentes impérios. É um esforço que alia o rigor historiográfico a abordagens computacionais, como a análise de redes e a modelação hierárquica de sistemas complexos.

Para Ana Sofia Ribeiro, investigadora do projeto MONSOON, “os principais objetivos têm sido recolher e extrair automaticamente a informação dos livros de monções, criar um modelo computacional  de relação entre pessoas, locais e eventos através da extração de informação destes documentos, e, por último, estudar a relação dos portugueses com as comunidades locais asiáticas, com outras potências europeias que estavam na Ásia ao mesmo tempo e com outros espaços de monarquia hispânica”.

Trata-se de um projeto inovador que conseguiu “treinar o modelo já existente de análise do dito português atual para o português do século XVII e que não só lesse esse português, como também extraísse e classificasse a informação desejada”, sublinha Ana Sofia Ribeiro. 

Através de projetos como o MONSOON e o HYBRIDS, e integrando ferramentas e métodos digitais, o ChronosLab explora novas abordagens para a produção de conhecimento, ao mesmo tempo que adota uma postura crítica em relação ao impacto do digital no património cultural e na cultura em geral.

Num mundo onde a verdade é constantemente desafiada e a memória histórica muitas vezes esquecida, projetos como o HYBRIDS e o MONSOON mostram como a tecnologia pode — e deve — estar ao serviço do pensamento crítico, da justiça e da democracia.

 

Publicado em 18.07.2025