O desvendar da arte da pintura mural de Almada Negreiros: Um projeto da UÉvora com vista à valorização, conservação e usufruição de cinco núcleos pictóricos na cidade de Lisboa
Como (melhor) conservar o legado de pintura mural de uma das figuras-chave da vanguarda e do modernismo em Portugal? Este foi o ponto de partida da equipa de investigação do Projeto ALMADA, da Universidade de Évora, que se propôs a estudar — pela primeira vez com técnicas de imagem e de análise — cinco núcleos de pinturas murais encomendadas a Almada Negreiros, na cidade de Lisboa, entre 1938 e 1956, com vista à sua valorização, conservação e usufruição.
Liderado pelo Laboratório HERCULES, o Projeto ALMADA desvenda os materiais aplicados e o modus operandi de Almada Negreiros nos núcleos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Fátima (1939), do edifício da antiga sede do Diário de Notícias (1939/40), das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos (1943–49) e do Liceu EB Patrício Prazeres (1956) — cinco conjuntos icónicos de presença monumental situados no coração de Lisboa e na zona ribeirinha.
Através de uma política de ciência aberta, de cariz participativo e inclusivo, destaca-se a partilha entre o meio académico e os cidadãos no âmbito deste projeto que, pela primeira vez, “possibilitou que visitantes subissem aos andaimes durante as campanhas analíticas, que falassem com os investigadores, que conhecessem as descendentes de Almada e observassem as pinturas de perto”, realça Milene Gil, coordenadora do Projeto ALMADA e investigadora do Laboratório HERCULES da UÉvora. Uma estratégia de comunicação que impulsiona o reconhecimento destas obras enquanto “património artístico e cultural, envolvendo o público e contribuindo para a sensibilização da importância da conservação do património cultural”, acrescenta ainda a coordenadora do projeto. E foi precisamente devido a este compromisso com diferentes públicos que o Projeto ALMADA foi reconhecido com o Prémio Europa Nostra, em 2023, na categoria de envolvimento e sensibilização dos cidadãos. Esta distinção — que é uma das mais prestigiadas no campo do Património Cultural — é atribuída anualmente e reconhece iniciativas de conservação e valorização do património cultural europeu, apresentando-se como a voz europeia da sociedade civil.
E porquê sensibilizar o público para murais do pós-Segunda Guerra Mundial? Para Mariana Pinto dos Santos, investigadora integrada do Instituto de História da Arte (IHA-NOVA), “a obra de Almada Negreiros é marcante e significativa para o século XX português e internacional, e no caso do seu trabalho de pintura mural, é autor de um conjunto único no século XX português. Em particular, as pinturas murais das gares marítimas são de enorme relevância, uma vez que os temas que Almada colocou na parede — a pobreza, o retrato da Lisboa popular, a emigração — estão a contrapelo do que que se esperava numa encomenda pública durante a ditadura do Estado Novo”, destaca a investigadora.
Iniciado em março de 2021, o Projeto ALMADA contribuiu de forma significativa para o conhecimento da produção artística de Almada Negreiros, bem como para a definição de uma estratégia de conservação do legado do artista. Após um primeiro momento dedicado ao levantamento documental, o projeto centrou-se na identificação e caracterização das técnicas pictóricas, dos constituintes dos suportes e das camadas cromáticas, analisando também as suas implicações nos processos de deterioração e no seu diagnóstico.
Para tal, foram realizados exames às superfícies das pinturas no local, recorrendo tanto a técnicas convencionais como a métodos avançados de imagem — abrangendo a gama visível e invisível — e combinando análises não invasivas in loco com técnicas microscópicas e analíticas de alta precisão em laboratório.
Entre os muitos resultados obtidos, destaca-se a definição da paleta cromática de Almada Negreiros e das suas técnicas. “Inclusive, fomos surpreendidos com a descoberta de que o artista utilizou o pigmento verde-esmeralda, que, à partida, não é comummente usado em pintura mural. Esta revelação levou-nos a aplicar técnicas de análise mais sofisticadas, como a microespectroscopia Raman e a microscopia eletrónica de alta resolução, que permitiram identificar a composição do pigmento, bem como alguns dos fenómenos de degradação a ele associados”, partilha António Candeias, co-investigador responsável do Projeto ALMADA e Diretor do Laboratório HERCULES da UÉvora.
O primeiro contacto com os pigmentos em pó utilizados por Almada Negreiros nas suas pinturas murais ocorreu em 2018, durante uma visita à propriedade da família, situada em Bicesse-Estoril. Nessa ocasião, as netas do artista, Rita e Catarina Almada Negreiros, conduziram a equipa de investigação até àquele que foi o seu estúdio de trabalho. “Foi uma experiência impagável. O atelier tinha pincéis, espátulas, tubos de tinta retorcidos, recipientes ainda com resíduos de tinta... E, quando começo a abrir caixas de madeira e descubro mais de 50 latas enferrujadas de pigmentos em pó para fresco da marca LeFranc-Paris… foi excecional”, recorda Milene Gil, coordenadora do projeto e investigadora do Laboratório HERCULES da Universidade de Évora. “Outra descoberta inédita foi encontrar fragmentos dos desenhos que Almada Negreiros fez à escala 1:1 das composições, e que depois foram repassados com a técnica do estresido para as paredes. Eles estavam a embrulhar pigmentos em pó. Pensávamos que ele os tinha destruído, mas não…”, Milene Gil recorda, evidenciando o espírito pragmático desta figura ímpar do panorama artístico português do século XX.
Recorde-se que este projeto transdisciplinar resulta de uma colaboração entre o Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, a (extinta) Direção-Geral do Património Cultural (através do DGPC-IJF e do DEPOF), o Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHA-NOVA FCSH) e a Administração do Porto de Lisboa (APL).
Para conhecer melhor o projeto “O Desvendar da Arte da Pintura Mural de Almada Negreiros (1938–1956)”, aceda aqui.