Saúde Mental: Uma Prioridade Individual e Global
Por Sofia Tavares*
Não há saúde sem saúde mental, na medida em que esta é parte integrante da saúde e qualidade de vida. A Organização Mundial da Saúde afirma que a saúde mental transcende a mera ausência de perturbação e doença mental. É um estado cognitivo, comportamental, emocional e social de bem-estar, com impacto na forma como as pessoas realizam as suas competências e potencial, como lidam com as exigências e dificuldades do dia a dia, como se relacionam, trabalham e contribuem para a comunidade [1].
A saúde mental tem um impacto positivo nos indivíduos (e.g. melhor saúde física, menos comportamentos de risco, melhor rendimento académico, melhor salário), mas também em termos sociais e económicos (e.g. maior produtividade, menor absentismo, menos crime, maior participação social, menos mortalidade) [2].
O lema do Dia Mundial da Saúde Mental deste ano é “Tornar a saúde mental e o bem-estar uma prioridade global para todos” [3] e pretende chamar a atenção para a necessidade urgente de abordar o subinvestimento crónico na saúde mental. Na União Europeia (UE), pelo menos uma em cada seis pessoas (84 milhões) tem problemas de saúde mental. No entanto, em média, os países gastam menos de 2% dos seus orçamentos nacionais de saúde em saúde mental. Globalmente, os problemas de saúde mental são as principais causas de incapacidade para a atividade produtiva e psicossocial da população. A perda de produtividade resultante de problemas de saúde mental custa à UE 4% do PIB anual [4] e é ainda responsável por quase metade do absentismo e grande parte do presentismo laboral [5]. As perturbações mentais são os problemas de saúde crónicos que afetam de forma mais significativa a população europeia, sendo responsáveis por cerca de 40% dos anos vividos com incapacidade [5].
Em Portugal, o Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental realizado em 2008-2009 [6] mostra que mais de 1 em cada 5 cidadãos (23%) sofre de uma perturbação mental. Estes valores colocam Portugal como segundo país da Europa com maior prevalência de perturbações mentais na população, com um valor semelhante ao da Irlanda do Norte, que ocupa o primeiro lugar. Segundo dados do mesmo estudo, quase metade dos cidadãos portugueses (43%) já teve uma perturbação mental durante a sua vida, sendo as mais comuns as de ansiedade e as depressivas [6]. O mesmo estudo de Almeida & Xavier [6] revela problemas graves no acesso aos cuidados de saúde mental: quase 65% das pessoas com perturbação mental não recebeu qualquer tratamento nos 12 meses anteriores à recolha dos dados. Somente um pouco mais de um sexto da população utiliza serviços prestadores de cuidados de saúde mental e apenas 1,7% procura ajuda nos serviços públicos de saúde mental. Para além disso, um ano após o início do problema, mais de metade dos pacientes ainda não tinha tido qualquer tratamento.
O elevado consumo de psicofármacos na população portuguesa é outro indicador muito preocupante do estado da nossa saúde mental. Na Europa, Portugal é um dos países que mais consome psicofármacos, sobretudo as mulheres. Por exemplo, quase um quarto das mulheres e um décimo dos homens da população geral utilizam ansiolíticos [6]. De acordo com um relatório do Observatório do Medicamento e Produtos de Saúde [7], entre 2000 e 2012 ocorreu um aumento do consumo de psicofármacos, sobretudo de antidepressores (+240%) e antipsicóticos (+171%). A utilização de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos aumentou de modo menos acentuado (+6%) mas é o subgrupo com maior utilização. O aumento deste consumo pode dever-se a uma maior acessibilidade aos medicamentos, a uma utilização mais prolongada destes fármacos ou à aprovação de novas indicações terapêuticas, mas também ao facto das intervenções psicológicas não estarem disponíveis e acessíveis à generalidade da população [8].
Mais recentemente, o estudo “Saúde Mental em Tempos de Pandemia (SM-COVID19)”, coordenado pelo Departamento de Promoção da Saúde e Prevenção de Doenças Não Transmissíveis do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge [9], que teve como objetivo avaliar o impacto da COVID-19 na saúde mental e bem-estar, também apresenta resultados preocupantes: 34% dos indivíduos da população geral e 45% dos profissionais de saúde inquiridos apresentavam sinais de sofrimento psicológico; 27% dos inquiridos da população geral indicaram ter sintomas moderados a graves de ansiedade, 26% sintomas de depressão e 26% sintomas de perturbação de stress pós-traumático; sobretudo as mulheres, os indivíduos entre os 18 e os 29 anos, os desempregados e os indivíduos com mais baixo rendimento apresentam mais frequentemente sintomas de sofrimento psicológico moderado a grave, ansiedade, depressão ou perturbação de stress pós-traumático. Nas últimas semanas vários artigos sobre a saúde mental em Portugal têm feito manchete na imprensa diária e uma vez mais refletem uma realidade cada vez mais alarmante: “Suicídios aumentam e estão no valor mais alto de quatro anos” (JN, 23.09.22); “Depressão aumentou nos adolescentes e afeta 42% dos jovens“ (Público, 29.09.22); “Às linhas de crise chegam cada vez mais jovens em solidão” (JN, 23.09.22).
Para além da dificuldade em aceder a cuidados especializados de saúde mental, o estigma associado à perturbação mental é um obstáculo na procura de ajuda por pessoas em sofrimento ou mal-estar psicológico. Este estigma alicerça-se em ideias negativas preconcebidas, com origem na falta de informação de qualidade sobre estas condições, que tendem a ver as pessoas com perturbação mental como diferentes, descontroladas, violentas ou perigosas, incompetentes ou incapazes, imprevisíveis, fracas e até responsáveis pela sua condição. A vergonha e o receio do julgamento social levam, por sua vez, a que as pessoas não queiram ser reconhecidas no lugar dos que têm perturbação mental, a serem relutantes em procurar ajuda especializada, a silenciarem a sua dor, a isolarem-se. Todos podemos contribuir para a construção de uma sociedade mais inclusiva, apoiante e que respeita a heterogeneidade da condição humana: procurando fontes credíveis de informação que ajudem na compreensão da saúde/doença mental; reconhecendo a doença mental como parte da diversidade humana; não assumindo como sinónimos “ter perturbação mental” e “ser doente mental” (i.e. a perturbação mental é apenas mais uma das características da pessoa, não a define); partilhando a experiência de perturbação mental com as pessoas da sua confiança (de forma a normalizar a experiência).
Por outro lado, há que zelar pela nossa própria saúde mental. O auto-cuidado pode ajudar a melhorar a nossa saúde mental, reduzindo o risco de adoecermos, aumentando os nossos níveis de energia e de capacidade de gestão do stress. O Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA [10] sugere um conjunto de estratégias para ajudar as pessoas a adotarem uma (cada vez mais importante) rotina de auto-cuidado, como sejam: praticar regularmente exercício físico, ter uma dieta equilibrada e manter-se hidratado, ter um sono de qualidade e em quantidade, realizar atividades relaxantes (e.g. exercícios de respiração, meditação), sentir-se grato (i.e. identificando ativamente coisas no seu dia a dia pelas quais se sente grato), desafiar os pensamentos negativos (i.e. questionando a sua validade e utilidade, e procurando pensamentos alternativos mais adaptativos e racionais) e procurar interações sociais positivas (que reduzem o stress, e podem ser uma fonte de suporte e ajuda instrumental em situações de necessidade).
Cuidar da saúde mental é cada vez mais tarefa de cada um de nós, por todos nós.
* Sofia Tavares
Professora do Departamento de Ciências Médicas e da Saúde, Escola de Saúde e Desenvolvimento Humano, Universidade de Évora.
Referências
1. WHO (2022). Mental health: strengthening our response. Geneva: World Health Organization. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-health-strengthening-our-response. Consultado em 6 de Outubro de 2022.
2. Herrman, H., Saxena, S. & Moodie, R. (Eds) (2005). Promoting Mental Health: Concepts, Emerging Evidence, Practice. A WHO Report in collaboration with the Victorian Health Promotion Foundation and the University of Melbourne. Geneva: World Health Organization.
3. WHO (2022) World Mental Health Day 2022: Make mental health & well-being for all a global priority. https://www.who.int/campaigns/world-mental-health-day/2022. Consultado em 6 de Outubro de 2022.
4. MHE (2022). Invitation for World Mental Health Day 2022. Brussel: Mental Health Europe. Disponível em: https://www.mhe-sme.org/world-mental-health-day-2022-2/. Consultado em 6 de Outubro de 2022.
5. MHPG (2012). How Mental Ilness Loses Out in the NHS. London: The Centre for Economic Performance of Mental Health Policy Group.
6. Almeida, J. M. & Xavier, M. (2013). Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental: 1° relatório. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. ISBN: 978-989-98576-0-5. http://www.fnerdm.pt/wp-content/uploads/2015/01/Relatorio_Estudo_Saude-Mental_2.pdf. Consultado em 6 de Outubro de 2022.
7. Infarmed (2013). Psicofármacos: Evolução do consumo em Portugal Continental (2000 – 2012). Lisboa: Gabinete de Estudos e Projetos do Infarmed.
8. OPP (2013). Investir na Saúde Mental através da Intervenção Psicológica. Lisboa: Gabinete de Estudos Técnicos da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
9. INSA (2021). Saúde Mental em Tempos de Pandemia (SM-COVID19). Lisboa: Departamento de Promoção da Saúde e Prevenção de Doenças Não Transmissíveis do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.
10. NIMH (2022). Caring for Your Mental Health. USA: The National Institute of Mental Health. https://www.nimh.nih.gov/health/topics/caring-for-your-mental-health. Consultado em 6 de Outubro de 2022.