OPINIÃO

O que pode a Música?

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Por Ana Telles *

Escrever sobre Música, para um músico profissional, pode parecer coisa evidentemente fácil. Na verdade, a complexidade que um tal exercício encerra decorre da necessidade de tentar pensar nessa Arte a partir de uma dupla perspectiva, de quem a pratica, e de quem dela usufrui.

Começando pela primeira, este contributo não pode ser senão pessoal, traduzindo um fascínio que, após mais de quarenta anos de prática assídua, não esmoreceu.

A Música, de facto, é uma coisa incrível... São dias cheios de horas que passam demasiado rápido, porque resta tanto por fazer...Dias que acabam com braços pesados e costas cansadas, a pedir cama... Mas, antes disso, a angústia de pensar em mais um pormenor que ainda não se domina; numa passagem cuja dificuldade teima em ceder; na incerteza de conseguir reter, nas diferentes facetas da memória, e recuperar delas, em tempo útil – no dia D à hora H – a infinita série de operações cerebrais, neurológicas e musculares que medeiam entre o olhar que devora a partitura e os dedos que tentam traduzir a essência do pensamento de alguém (imperfeitamente registado e transmitido) em milhares de movimentos,  controlados ao milissegundo e simultaneamente prenhes de imprevisto, de espontaneidade, de imponderabilidade.

Todos esses dias, com as suas numerosas e rápidas horas, levam também as marcas da ausência e da abnegação, por vezes confundidas com egoísmo primário: o passeio que não se deu, o telefonema que não se fez, a mensagem por escrever, o encontro adiado, o jantar comido à pressa “para ir estudar mais um bocadinho”...

O concerto é o parto, a catarse, a libertação; é dádiva e, simultaneamente, enriquecimento. Só funciona se e quando me entrego por inteiro, aceitando o erro, a imperfeição, o limite que o momento me impõe, tanto quanto a beleza de ser, o privilégio de estar, a comunhão indizível que assim se estabelece com o outro. Quem me ouve, lê o mapa das minhas emoções e, de certo modo, vagueia pelos meandros mais íntimos e verdadeiros do que sou. Ao fazê-lo, multiplica a minha força, propulsionando o que de melhor há em mim, e abre uma janela de plenitude, sobre a qual me debruço avidamente.

De facto, o trabalho criativo, de dentro para fora, chama por mim, tendo-se tornado, há muito, uma necessidade incontornável. A sua disciplina regulamenta o meu dia, o seu percurso árduo valida a passagem do tempo. A satisfação do seu resultado e o eterno fascínio de poder, através dele, comunicar, constituem uma extraordinária forma de realização, pessoal e profissional. É que, ao longo do tempo, o piano (instrumento da minha prática musical) foi-se tornando a voz da minha voz; o fio de Ariana que me conduz, lenta mas seguramente, ao exterior dos meus limites; a teia que, pouco a pouco tecida, me franqueia a saída do labirinto e a passagem ao infinito. Porque todas as horas de labor, e cada nuance do meu esforço, representam uma aturada e constantemente renovada tentativa de melhoramento das minhas próprias capacidades, sempre no limiar do impossível, e continuamente a expandir o universo dos múltiplos possíveis... 

Por tudo isso, dei comigo a pensar no que representa para mim a música, ou melhor, na natureza da minha relação com ela. Pois bem. A música não é, nem nunca foi, para mim, um adorno. É um motor. Impele-me, agita-me, faz-me passar de um estado a outro, mantendo eu embora a minha essência, que ela abarca, aceita, acarinha, estimula e desafia... Como a água sob o efeito da temperatura, ora leve e volátil enquanto gás, ora líquida e fluida, ora dura, sólida... A música move-me, instilando em mim confiança e a energia de que necessito para fazer face a todas as vertentes da vida que abracei. É isso. A minha relação com a música é coisa visceral, de entranhas. Fazer corpo, ser corpo vibrante.

Mas o que é, ou pode a Música, para outras pessoas que a praticam ou que, simplesmente, dela usufruem? Que benefícios podem advir da escuta musical, mais ou menos intencional; da respectiva partilha, no âmbito de concertos, programas de rádio, podcasts ou outros formatos; da prática instrumental ou vocal, individual ou em conjunto; da composição e da improvisação, assim como de tantas outras vertentes da experiência musical?

Para responder a esta interrogação, parece-me oportuno relembrar que, nos últimos anos, a investigação sobre Música, Saúde e Bem-estar conheceu um notório incremento[1].

Vários estudos demonstram que a experiência musical, seja ela de produção ou fruição, tem a capacidade de modular a atividade do sistema nervoso autónomo. A evidência científica sugere igualmente que fazer e/ou ouvir música repetidamente pode ter efeitos de longo prazo sobre o tónus ​​do sistema nervoso autónomo, i. e. o equilíbrio entre a atividade simpática e parassimpática. Ora, o desequilíbrio do sistema nervoso autónomo está associado a uma série de distúrbios neurodegenerativos e do neurodesenvolvimento, problemas de saúde mental e doenças não transmissíveis. McCrary e Altenmüller [2] sugerem, pois, que a capacidade da música para modular o tónus ​​do sistema nervoso autónomo pode justificar amplos benefícios da prática e da fruição musicais para a saúde, tal como corroborado por outros estudos. Não será, pois, de estranhar que “(…) na investigação sobre as atividades de lazer que mais contribuíram para retardar do aparecimento da doença de Alzheimer, a dança tenha surgido no topo da lista, enquanto tocar um instrumento musical mereceu o terceiro lugar.”[3]

Constatou-se igualmente que a fruição musical, intencional ou não intencional, poderia constituir um meio para reduzir a dor em determinados quadros clínicos, bem como diminuir a agitação e melhorar a postura, o movimento e o bem-estar de pessoas com demência. Provou-se que a frequência de concertos, por exemplo, melhorava as conexões sociais e o humor em idosos e pacientes hospitalares. Cantar em grupo parece promover a saúde cognitiva e o bem-estar de idosos e pessoas com problemas de saúde mental, doenças pulmonares, acidentes vasculares-cerebrais e demência, através dos seus efeitos nas funções cognitivas, no humor e nas conexões sociais. Tocar um instrumento musical foi associado à melhoria da saúde cognitiva e bem-estar em estudantes, idosos e pessoas com lesões cerebrais leves, por meio de efeitos nos processos motores, cognitivos e sociais. Também a prática da dança e do movimento com música foi associada à melhoria da saúde e do bem-estar de pessoas com demência, mulheres com depressão pós-parto e mulheres sedentárias com obesidade, através de vários processos cognitivos, físicos e sociais. Não são de excluir os efeitos de práticas musicais, como a composição e a improvisação, na inclusão e conexão social e cultural, na autoestima e no empoderamento[4].

Tendo em conta as conclusões acima elencadas, compreende-se que diferentes comunidades estejam a desenvolver e implementar mecanismos de promoção de saúde e bem-estar baseados em várias formas de experiência artística e, concretamente, musical. Os recentes programas de prescrição cultural, que surgem um pouco por toda a parte, constituem um excelente exemplo dessa dinâmica.

Por outro lado, no século passado assistiu-se a um forte e rápido desenvolvimento da Musicoterapia, cuja origem remonta a Platão e Aristóteles (que reconheceram o seu potencial terapêutico da Música sobre a saúde e os comportamentos humanos) e foi referenciada pela primeira vez num texto datado de 1789[5]. Segundo a Federação Mundial dessa disciplina, ela consiste “[n]a utilização da música e/ou dos seus elementos (som, ritmo, melodia e harmonia) por um musicoterapeuta qualificado, com um cliente ou grupo, num processo de facilitação e promoção da comunicação, relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, no sentido de alcançar necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas. A Musicoterapia objetiva desenvolver potenciais e/ou restabelecer funções do indivíduo para que ele/ela possa alcançar uma melhor integração intra e/ou interpessoal e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida, através da prevenção, reabilitação ou tratamento”.[6] De salientar, neste aspecto, o reconhecimento do potencial de intervenção da música ao nível dos processos emocionais, e não apenas cognitivos, tanto de populações saudáveis como de pacientes com enquadramentos clínicos muito variáveis.

Naturalmente, os benefícios da Música não se resumem aos seus efeitos terapêuticos, mas tocam universos muito distintos. Não sendo possível, no âmbito deste artigo, aprofundar significativamente essas questões, gostaria ainda assim de relembrar as evidentes vantagens da prática musical a nível do desenvolvimento da criatividade e do espírito crítico, da capacidade de concentração e esforço. A nível económico, é já bem conhecido o valor das chamadas indústrias culturais e criativas[7], assim como o impacto de actividades musicais (como festivais e outras manifestações) no florescente sector do turismo cultural[8].

Ao modelar a passagem do tempo, a Música pode conduzir-nos a estados de contemplação meditativa ou, pelo contrário, excitação motora, colocando-nos temporariamente em espaços temporais alternativos que nos permitem alhearmo-nos, momentânea e controladamente, do curso do dia-a-dia e do fluxo normal das nossas ocupações. Essas “bolsas” experienciais estimulam a criatividade, exercitam o potencial emocional e potenciam enriquecedoras epifanias; transcendendo os limites das linguagens verbais, ligam-nos ao mais íntimo de nós próprios, colocando-nos simultaneamente em diálogo com o outro e com o mundo que nos rodeia.

Afinal, o que pode a Música? Quase tudo, diria eu... ou o mais importante.

* Ana Telles

Pianista

Directora da Escola de Artes da Universidade de Évora

 

 

 

 

[1] Cf. Bonde and Theorell, 2018; Daykin et al., 2018; Dingle, Sharman, Bauer et al., 2021; Fancourt e Finn, 2019; McCrary e Altenmüller, 2021; MacDonald et al., 2012; Sheppard and Broughton, 2020, entre outros.

[2] McCrary JM, Altenmüller E. Mechanisms of Music Impact: Autonomic Tone and the Physical Activity Roadmap to Advancing Understanding and Evidence-Based Policy. Front Psychol. 2021 Aug 27; 12:727231. doi: 10.3389/fpsyg.2021.727231. PMID: 34512483; PMCID: PMC8429896.

[3] Verghese J, Lipton RB, Katz MJ, Hall CB, Derby CA, Kuslansky G, Ambrose AF, Sliwinski M, and Buschke H. Leisure Activities and the Risk of Dementia in the Elderly. New England Journal of Medicine. 2003 Jun 19; 348:2508-2516. doi: 10.1056/NEJMoa022252

[4] Dingle GA, Sharman LS, Bauer Z, Beckman E, Broughton M, Bunzli E, Davidson R, Draper G, Fairley S, Farrell C, Flynn LM, Gomersall S, Hong M, Larwood J, Lee C, Lee J, Nitschinsk L, Peluso N, Reedman SE, Vidas D, Walter ZC and Wright ORL. How Do Music Activities Affect Health and Well-Being? A Scoping Review of Studies Examining Psychosocial Mechanisms. Front. Psychol. 2021. 12:713818. doi: 10.3389/fpsyg.2021.713818

[5] Cf. https://www.musictherapy.org/about/history/ (consultado em 30/09/2022).

[6] Cf. https://www.apmtmusicoterapia.com/o-que---a-musicoterapia-gwvmm (consultado em 30/09/2022).

[7] Cf. https://fenice-project.eu/pt/cultural-and-creative-industries-pt/ (consultado em 30/09/2022); Mesquita DB. O valor da actividade criativa: estudo de caso sobre o valor económico, cultural e social da música e do artesanato em Zavala e na Ilha de Moçambique [Em linha]. Lisboa: ISCTE, 2011. Dissertação de mestrado. [Consultada em 30/09/2022] Disponível em http://hdl.handle.net/10071/4446.

[8] Carvalhal FM. Os festivais de música como promotores de turismo cultural [Em linha]. Porto: UCP, 2015. Dissertação de mestrado. [Consultada em 30/09/2022] Disponível em http://hdl.handle.net/10400.14/17540.

Publicado em 04.10.2022