OPINIÃO

Saúde mental e pandemia

Ilustração do item

Por Rui C. Campos

Genericamente as situações de crise e adversidade podem sempre ter impacto na saúde mental e, sobretudo, agravar problemas pré-existentes. Parece que podem ter um aspecto positivo, que é poder falar-se de saúde mental, embora, às vezes numa perspectiva um pouco simplista, tipo manual de bolso; e é como se a sociedade tivesse despertado agora para os problemas de saúde mental. Lembro as palavras recentes do Professor Miguel Xavier, coordenador do Programa Nacional de Saúde Mental, enfatizando que a falta de recursos na área da saúde mental não é uma consequência da pandemia; a pandemia só veio agravar um problema antigo.

As situações são sempre o que são e aquilo que colocamos nelas, bem como aquilo que fazemos com elas. As pessoas reagem como podem; às vezes não como querem, como gostariam; reagem com aquilo que já são. São conhecidas as diferenças entre indivíduos na forma de reagir à adversidade; a maior ou menor vulnerabilidade de cada um a situações fortemente stressantes. No entanto, no caso desta pandemia, a persistência da situação e a impotência que origina esbatem um pouco essas diferenças. A pandemia gera uma incerteza permanente e uma sensação de perda de controlo. E não sabemos quando vai terminar. A situação é muito desorganizadora e remete para uma certa fadiga pandémica. Esta fadiga pode conduzir a um não respeitar das normas, pode, em boa verdade, contribuir para comportamentos de risco. A fadiga e o descontrolo podem também relacionar-se com o medo ou a efectiva perda de rendimentos, com a necessidade de contacto com os outros que nos foi coarctada, com o não poder circular livremente, com a informação excessiva e contraditória, com uma certa dessensibilização defensiva ao sofrimento e com um certo sentimento de omnipotência. A pandemia ameaça a nossa segurança, os nossos sentimentos de pertença e de realização pessoal e os nossos sentimento de liberdade e de previsibilidade; e o ser humano precisa de previsibilidade; aliás, o ser humano é, sobretudo, um ser que tenta prever o futuro; a mente humana é, fundamentalmente, um instrumento de previsão.

Como era expectável a investigação, e destaco o estudo do Instituto Nacional Ricardo Jorge1), comprova um forte impacto psicológico da pandemia e a presença de uma percentagem importante de queixas ansiosas, depressivas e de stress pós-traumático, muito em particular nas pessoas que foram infectadas e nos profissionais de saúde. Um estudo recente publicado na revista The Lancet Psychiatry2) mostra um aumento da incidência de uma primeira perturbação mental em pessoas infectadas, muito em particular de perturbações da ansiedade e de perturbações do sono – insónia. Por outro lado, quando comparamos os resultados que obtivemos já durante este segundo confinamento com uma pequena amostra comunitária – amostra pandémica – com os resultados de uma amostra pré-pandémica, controlando as diferenças entre as amostras em variáveis demográficas, verificamos que a amostra pandémica apresenta resultados médios significativamente mais elevados em três dimensões psicopatológicas: ansiedade, ansiedade fóbica e depressão; contrariamente, a amostra pandémica apresenta resultados médios significativamente mais baixos em ideação paranóide, resultado que é de certo modo surpreendente. Talvez agora o perigo, a desconfiança estejam mais materializados num inimigo comum – é o vírus que se teme, não é o vizinho, o patrão ou o colega. Uma leitura atenta das queixas/sintomas de forma mais individualizada deixa-nos, no entanto, com a sensação de que mais do que a menor ideação paranoide, os resultados reflectem uma sensação de solidão: o outro "não está presente", pelo que não pode ser objecto de desconfiança.

Genericamente, pode dizer-se que o ser humano tem várias formas de reagir à adversidade, mas talvez se possa afirmar que as duas principais são de facto o medo/ansiedade e a depressão/abatimento. Ainda a raiva e o descontrolo/passagem ao ato. Mas há ainda uma forma mais patológica que é a negação/uma certa sensação de omnipotência – "a mim não me acontece nada". Compreende-se bem que a situação pandémica tenha a capacidade de potenciar a resposta ansiosa e a reposta depressiva: o medo de ficar contaminado e de morrer ou de ficar sem rendimentos, por um lado e a sensação de impotência e de solidão, por outro. Depois, é importante considerar variáveis mediadoras externas que, em boa verdade são factores de risco major para a perturbação mental: o desemprego e a pobreza. Ocorre-me uma das letras de Zeca Afonso: "onde não há pão, não há sossego". Mas estar ansioso e/ou depressivo quanto baste e uma certa irritabilidade, sem que a pessoa se desorganize é, provavelmente, um indicador de saúde mental. É um sinal que a mente se consegue manter coesa, que não colapsa.

Costuma associar-se saúde mental a ausência de sofrimento. Mas na verdade, pode ser sadio, "estar ou ficar doente" em algumas circunstâncias, sentir pelo menos um importante sofrimento até, forte mal-estar, sem que isso implique ausência de saúde mental. Talvez não seja a ausência de sofrimento que define saúde mental, mas a possibilidade de o relativizar, de o tolerar, de saber viver com ele – claro que apenas até certo ponto. Saúde mental e psicopatologia estão em eixos diferentes; saúde mental não equivale a ausência de psicopatologia. Pode-se ter uma perturbação mental e ter características que habitualmente a Psicologia associa à saúde mental. Saúde mental é capacidade de nos adaptarmos – note-se a importância da capacidade de adaptação neste tempo de pandemia – e é também, num certo sentido, resignação e aceitação, algo muito importante por agora, e sempre; e é ainda esperança....e também, neste tempo e não só, a possibilidade de não esmorecer, de resistir. Saúde mental como processo, como uma procura, como busca de sentido, mesmo quando a realidade se apresenta como potencialmente traumática como agora, mesmo quando é preciso momentaneamente "fazer uma pausa". O ser humano é um criador de significados por excelência; precisa de sentido e de história, não tolera o caos e a descontinuidade; o caos gera doença.

A investigação recente mostra que a pandemia está a ter um impacto muito significativo nas pessoas que já tinham perturbação mental. O estudo publicado na revista The Lancet Psyciatry, já citado, demonstra também que as pessoas com perturbação mental prévia têm maior risco de serem infectadas pelo SARS-COV-2. Uma revisão recente de literatura3 revela ainda que pessoas com perturbação mental podem, para além de experienciar um agravamento dos sintomas durante a pandemia, desenvolver um maior risco de suicídio. Sem ser exaustivo, posso dar aqui alguns exemplos de perturbações em que os sintomas pré-existentes se podem agravar. As pessoas com perturbação obsessivo-compulsiva poderão experienciar mais dificuldades ou, talvez, não necessariamente; podem até considerar que a realidade dá sentido à sua experiência, por exemplo, por se ter de desinfectar as mãos recorrentemente; dependerá sempre do modo como a pessoa olha a situação; na hipocondria; na perturbação de pânico; na psicose, pelas dificuldades de adaptação marcadas; nas perturbações neuro-cognitivas como consequência da falta de estímulo, associada ao isolamento; o isolamento que promove seguramente a perda cognitiva mas, também, a perda de aptidões funcionais. O impacto da pandemia dependerá certamente do tipo de perturbação prévia mas, também, da sua gravidade e cronicidade, de outras características psicológicas da pessoa, do seu contexto de vida, do nível de suporte social e do nível sociocultural das pessoas. Mas é preciso ter em mente que há pessoas com perturbação mental que resistem à adversidade, que criam, que constroem, que contribuem para o social. Prefiro dizer que, quanto maior a fragilidade e a vulnerabilidade de base no indivíduo, maior a probabilidade de responder mal à adversidade, independentemente da presença de um diagnóstico formal de perturbação mental – a adversidade, se me é permitida a metáfora, vai partir onde está já está fissurado. Atrevo-me a dizer que a pandemia amplia sobretudo o que lá está.

Mas voltando à questão do sofrimento: tem um valor muito negativo na sociedade actual. Não se pode estar triste ou ansioso. Agora a pandemia legitima-o mais, mas parece que é preciso erradicar rapidamente os sintomas; e a tensão que se gera, alimenta ela mesma, o mal-estar. E são sistematicamente pedidas e recomendadas estratégias para lidar com a pandemia. Como se houvesse soluções mágicas e universais para lidar com a adversidade e promover a saúde mental.

Creio que a maioria das pessoas se desloca agora mentalmente ao longo de um contínuo entre dois externos (algumas deslocam-se menos; ficam fixadas num dos pólos): de um lado a vulnerabilidade; um sentimento de falta de controlo, de paralisia. É que o real, mais do que apenas espaço de projecção dos nossos medos internos é, ele mesmo, perigoso. Não podemos andar sem máscara e podemos ser contagiados. Considero aqui útil o conceito de uma "hiper-realidade", uma realidade que se impõe, que esmaga, que esbate a fantasia. No outro extremo do contínuo está uma atitude de um certo negacionismo/omnipotência: "a mim não me vai acontecer nada"; é uma forma de fugir para a frente, de passar ao acto; porque há uma inquietante impaciência. E a desobediência aos pedidos das autoridades de saúde pode ser entendida como resultado da atrás referida fadiga pandémica mas, também, como uma certa reacção paradoxal, que esconde uma falta de capacidade de auto-regulação. É certo que há um desejo que chegue o fim e, ao mesmo tempo, há medo; é uma situação de forte tensão a que vivemos; por isso a irritação é normal; aceitemo-la.

Saliento ainda no tempo actual, a falta do contacto com o outro e do toque e a ausência da face....é a face com máscara e no Zoom não tocamos, e olhamos a tela, não olhamos o outro. Penso que se tem criado uma carência de contacto humano. As pessoas estão ávidas do olhar do outro; de "olho no olho"; há uma avidez de relação. O que acontecerá quando terminar a pandemia? Acredito que podemos ter uma boa surpresa: a criação de novas relações, de novos encontros; um aumento da proximidade e da intimidade. Se calhar é só o meu desejo! Em boa verdade esta avidez já existia; vinha já a construir-se na sociedade da tecnologia, que promove uma identidade fluida; as redes sociais não substituem o contacto. E uma identidade fluida cria vulnerabilidade e torna-nos menos capazes de lidar com a incerteza.

Saliento neste tempo, a necessidade de continuar um movimento interno; de uma busca de tranquilidade e sentido; ir à nossa reserva interna, àquilo que fomos construindo; buscado a possibilidade de nos auto-regularmos; a capacidade de esperar. A minha esperança, e esperança tem a ver com espera, é que cada um continue a procurar internamente o que for mais confortável para si, e isso é diferente para cada um. A busca tem de ser interna – há muitas formas, desde que em acordo com o princípio da realidade; sem negar a realidade. É, por vezes, na adversidade que se constrói sentido, que se pode re-significar o percurso pessoal e seguir em frente.

1 Instituo Nacional de Saúde Ricardo Jorge (2020). Saúde mental em tempos de pandemia. INSA.

2 Taquet, M. et al. (2020). Bidirectional associations between COVID-19 and psychiatric disorder: Retrospective cohort studies of 62.354 COVID-19 cases in the USA. The Lancet Psychaitry, 8, 130-140.

3 Pera, A. (2020). Depressive symptoms, anxiety disorder, and suicide risk during the COVID-19 Pandemic. Frontiers in Psychology. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.572699 

 

Rui C. Campos

Departamento de Psicologia, Escola de Ciências Sociais

Centro de Investigação em Educação e Psicologia (CIEP-UE)

Publicado em 24.02.2021