A mente humana em estado de emergência
Por Rui C. Campos
A mente está em estado de emergência e a impotência da condição humana tornou-se brutalmente ruidosa; a surpresa perante o desconhecido e o imprevisível, mas sobretudo perante aquilo que não tem fim com data marcada e que dificulta o olhar em frente, em busca de tranquilidade.
A estrada da viagem da vida parece ter barreiras difíceis de transpor e ficamos na dúvida se podem ser contornadas, por um movimento interno de espera e de esperança; em busca de um futuro mais regulado, mais normal, mais humano. A mente em estado de alerta perante o invisível; cada um, cada cidadão, um possível transmissor, um agente passivo de um inimigo oculto; as pessoas olham-se pouco, desviam o olhar, evitando ou neutralizando simbolicamente o perigo e expurgam o medo.
Afinal o inferno pode mesmo ser os outros, como dizia Sartre. Um real que se impõe, torna-nos seus prisioneiros, dá-nos menor espaço para a fantasia, para nos virarmos para nós próprios, porque tem o potencial de nos paralisar mental e corporalmente; o real, mais do que apenas espaço de projecção dos nossos medos internos é, ele mesmo agora, perigoso; somos todos potencialmente traumatizáveis por esse real "perverso". A falta de uma informação mais consistente e mais definitivamente credível não ajuda. Procuramo-la, mas sem certezas. Porque ninguém sabe bem ao certo. Um presente temporal apenas tolerável, num espaço mental que é de difícil nomeação, mas que se pode aproximar a uma experiência de desamparo. Que evoca e reenvia mentalmente aos primeiros tempos de vida, de vulnerabilidade do ser humano, totalmente dependente do outro, do ambiente. Para além da pandemia em si, as suas potenciais consequências ampliam esse possível desamparo e vulnerabilidade; por exemplo a ameaça ou, mesmo já, a concretização da perda de emprego. E perder o emprego é ficar vulnerável. Qualquer coisa que paira no ar e que se materializa num sentimento de "vida em suspenso"; e uma sensação claustrofóbica, porque em parte a situação adquire o poder de actualizar, também, fantasias e acontecimentos passados que foram, de facto, potencialmente traumáticos.
A pandemia é sobretudo mestra em evocar a angústia de morte; a angústia existencial é actualizada, amplifica-se abruptamente; é agora muito mais difícil elaborar o medo de morrer. Cada um reage como pode e como é. São conhecidas as diferenças entre indivíduos na forma de reagir à adversidade; a maior ou menor vulnerabilidade de cada um a situações stressantes. Mas a gravidade, a persistência da situação e a falta de experiência prévia em lidar com uma situação idêntica esbatem essas diferenças. O ser humano tem várias formas de reagir à adversidade, mas talvez se possa dizer que as duas principais são o medo/ansiedade e a depressão/abatimento. E esta situação de emergência tem o potencial de despoletar ambas: o medo de ficar contaminado e de morrer, por um lado e, a sensação de perda, de impotência, por outro. Ainda, a culpa por poder contaminar/ter contaminado alguém. Nas pessoas com uma perturbação mental diagnosticada a situação pode ser mais difícil, mas estar com medo e/ou depressão quanto baste, sem que a pessoa se desorganize é, provavelmente, bom e um sinal de saúde mental. É um sinal que a mente se consegue manter coesa, que não colapsa.
O verdadeiro impacto psicológico desta situação, porém, está por determinar. Neste tempo pode ser preciso procurar ajuda técnica e essa ajuda, felizmente, foi disponibilizada pelo estado português através da linha de aconselhamento psicológico do SNS24. No futuro será preciso mais, porém; muito mais. A saúde mental tem sido sempre o parente pobre da saúde. Não podem ser sempre só intervenções na crise; os cidadãos têm o direito de beneficiar quando precisam e, de forma comparticipada pelo estado, de acompanhamento psicológico/psicoterapêutico continuado, mesmo quando não estamos em situações de emergência. Sabe-se que as pessoas com mais saúde mental, que se sentem melhor consigo próprias, sentem-se também melhor no seu local de trabalho, produzem mais, ficam menos vezes doentes e, consequentemente e a longo prazo, poupam verbas ao estado. Se temos tosse ou icterícia vamos ao médico, porque é que quando nos assola a dor mental não podemos procurar ajuda de um psicólogo?
O impacto na saúde mental do medo, do confinamento, da menor mobilidade física e da falta de contacto com o ambiente natural e social, com o sol, e ainda, em alguns casos, para os que estão em família, do excesso de interacções num reduzido espaço físico e o acréscimo de tarefas está, verdadeiramente, por determinar. O burnout dos técnicos de saúde também. Ouvi um médico dizer já há alguns dias que a covid19 é uma "doença do contacto humano": uma das melhores medidas profiláticas é de facto a distância; mas o que está por determinar também, é o impacto da falta de proximidade física, da falta do toque, do beijo, do abraço; carência esta que evoca em negativo, os primeiros tempos de vida, de contacto da figura materna com o bebé, contacto este que é físico, mas também que é, simultaneamente, psíquico; que vai permitindo estruturar a mente, que vai constituir os primórdios da capacidade de auto-regulação; contacto e olhar primeiros que ajudam a transformar emoções caóticas e destrutivas em algo elaborável e que vão ajudar a construir uma pele psíquica e contentora.
Sem essas interacções fundadoras de qualidade fica a vulnerabilidade. E é um sentimento de vulnerabilidade, justamente, que a situação actual potencialmente desperta; desperta também impaciência e/ou de falta controlo e/ou pânico. É este pânico que leva, aliás, ao açambarcamento, de alimentos e de medicamentos. Ter a dispensa cheia dá uma sensação de controlo e de segurança. Alguns porém reagem com uma espécie de mecanismo de negação/omnipotência, com uma crença de que nada lhes pode acontecer; é uma forma de fugir para a frente, de passar ao acto; outra é a paralisia, ou o sucumbir perante a dureza da situação, com maior ou menor regressão mental a fases mais precoces do desenvolvimento humano; outra ainda, é uma certa hiperactividade/hipercontrolo, por exemplo, comprar tudo potencialmente útil, mesmo tudo e, atempadamente, limpar tudo ate à exaustão, apreender tudo sobre a doença e enviar o máximo de informação a toda a gente; uma espécie de busca de segurança mas que no extremo pode gerar uma verdadeira situação de "escravidão" psicológica. Ainda os que desobedecem aos pedidos/directrizes das autoridades. Trata-se de uma espécie de reacção paradoxal, uma espécie de pseudo-rebeldia, mas que esconde uma falta de auto-controlo. Cito aqui a este propósito o psicanalista Coimbra de Matos numa entrevista recente: “A tendência social para a desobediência faz parte da educação de domesticação do passado e da insuficiente liberdade que nos foi dada…. Quando não somos tão domesticados, conseguimos auto-limitar-nos, porque criámos essa capacidade de autocontrolo”.
Como disse antes, cada um reage como pode…. A minha esperança é que cada um possa procurar internamente o que de melhor tiver para se auto-regular, o que for melhor parta si, e isso é diferente para cada um; a busca é interna. Não tenho dicas ou soluções universais, ninguém tem na verdade, apesar do que muito já foi escrito sobre o tema. Querer simplesmente obrigar-se a determinada rotina ou a cumprir determinado programa pode, aliás, em alguns casos, ser ainda mais ansiogeneo. Que seja possível uma busca interior de sentido e de tranquilidade, de um embalo, almofadado e aconchegado pelo que somos e pelo que já vivemos, aguardando por um futuro melhor. Que nos seja possível alegrarmo-nos e lembro o músico brasileiro Osvaldo Montenegro e uma das suas letras: “Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso que eu me lembro ter dado na infância…. Que a minha vontade de ir embora se transforme na calma e paz que mereço, que a tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada….” Que neste tempo seja possível a cada um de nós olhar para si próprio, que possa ser um tempo de elaboração psíquica; não é fácil, mas é possível!
Rui C. Campos
Departamento de Psicologia, Escola de Ciências Sociais
Centro de Investigação em Educação e Psicologia (CIEP-UE)