OPINIÃO

Revisitar o tempo da Pneumónica. Inquietações de historiadora …

Por Maria de Fátima Nunes *

Vivemos em quarentena. Fechados. O virtual tomou conta dos nossos quotidianos. Tempo de vazios que nos obrigam a pensar, inquietar e perceber como a condição humana é global! E com tantos traços de permanência de tempo longo, muito longo.

De um tempo de 100 anos.

Em Maio de 1919, a revista Science de 1919 (FRIDAY, MAY 30, 1919 –, pela escrita de Major George A. Soper estabelecia o balanço da pandemia; espanto; incredulidade, estranheza perante o desconhecido, catástrofes já tinham existido muitas, pestes endémicas sempre presentes na história das epidemias. Sismos, secas, guerras, um alinhamento de apocalipses cíclicos, sempre presentes no Antigo Regime europeu. Morte e medo sempre associados a estes surtos. No inico do século XX, em contexto de I Grande Guerra Mundial a Pneumónica trouxe algo de novo, misterioso, invisível, um cavaleiro desenfreado que entrava em territórios mundiais, muito rapidamente. Em Maio de 1919, George Soper (engenheiro sanitário americano) regista nas páginas da Science o facto o espantoso sobre este pandemia ser o mistério que a envolvida. Após poucos meses volvidos, sobre o pico, Science centra-se nos 12 mandamentos que mundialmente se devem passar a cumprir, em tempos pandémicos. Por simbologia os 3 C’s: «clean mouth, clean skin, clean clothes», são o nosso 3L’s: limpar boca, limpar pele, limpar roupa! Os paralelismos com os dias que hoje vivemos são familiares, como se de uma gramática se tratasse, as regras de padrões de protocolos internacionais da Organização Mundial de Saúde, substituindo limpar por proteger! E parece que os Estados configuraram estes padrões, de forma consensualizada, mundializada, com a densificação da pandemia «espanhola», em contexto de I Grande Guerra Mundial e de vários outros acontecimentos marcantes, para a Europa e para o velho retângulo à beira do Atlântico depositado!

Durante muito tempo, para os historiadores a «gripe espanhola» foi um não tema! Uma oficina de história que se preocupava com os vivos, deixando a história das mortes para gavetas especializadas, muito relacionadas com as mentalidades, com a construção mental e artística que as elites sociais iam formulando – em diferentes suportes - sobre a Morte. Também por epidemias!

Da temporalidade do mundo Contemporâneo, o século XIX deixou, e organizou, memória, havia pedaços de debates médico-sanitários, como a peste do Porto de 1899! Ricardo Jorge impõe e sofre o apedrejamento da Rua do Almado, a casa dos Pais, na cidade do Porto «A Peste e o cerco de 1899». “Nunca mais o Porto foi o mesmo”» - DOSSIER temático Publico P2– 22-03-2020. O seu amigo Câmara Pestana foi de Lisboa ao Porto em socorro de solidariedade científica e sanitária, em nome da saúde pública, morre por infeção, assunto analisado na recente tese de doutoramento de História e Filosofia da Ciência, Universidade de Évora, de Alexandra Marques, O Instituto Bacteriológico Câmara Pestana. Ciência Médica e cuidados de saúde (1892-1930), defendida em já Janeiro 2020 (brevemente a surgir no repositório). No século XXI a oficina dos historiadores abriu bancadas laboratoriais para perguntas cada vez mais interdisciplinares e de grande visibilidade social, temas sensíveis que iam emergindo no mundo da globalização.

Voltamos ao dia 24 Março 2020, cumpre-se mais um dia de quarentena apertada. As imagens que nos rodeiam são inquietantes e propagam receio, por nós, pelos que estão à nossa beira. E… «surge à memória» revisitar mentalmente a Exposição que teve lugar na Primavera – Verão de 2019, na Fundação Calouste Gulbenkian: Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal 

E à visão avassaladora das criatividades artísticas somamos, quase em jeito de visão antecipada, o escopo de saber útil de historiadores, concentrada no número temático da revista Ler História, em 2019 - Revisitar a Pneumónica de 1918-1919. 

Estávamos em Fevereiro de 2019. E a apresentação pública foi pretexto para ponto de encontro, de debate, de olhares diferentes e cruzados sobre uma pandemia de há pouco mais de um século! E parecia tão distante; e tantas vezes apagada pela violência militar da I Grande Guerra Mundial e dos mortos da Guerra! Pontos de vista registados no suporte da revista, mas amplamente alargados com a presença dos oradores, entre eles a magistral conferência de Constantino Sakellarides, “A Gripe e a Cidade”! Hoje quando recordo as suas palavras, parece-me que o que parecia ficção científica se podia ter tornado numa realidade visionária e preventiva, tal como se adivinha na disseminação do programa de Revisitar a Gripe Pneumónica de 1918-1919

Mas voltemos à oficina de historiadora para uso do referente cronológico de 1918 vs. Pneumónica, de onde emerge a personalidade que mais ouvimos falar nos dias de quarentena em que nos encontramos, sem data – Ricardo Jorge, fundador e patrono do Instituto Ricardo Jorge. Homem de ação sanitária e de políticas de saúde púbica, procurava agir, ler «sinais de futuro» num tempo pré Influenza. 

 

Imagem 1. A Influenza. Nova Incursão Peninsular. Relatório apresentado ao Conselho Superior de Higiene, sessão de 18 junho 1918, Lisboa, Imprensa Nacional, 1918.

Em 18 de Junho 1918 dá ordem de impressão para o Relatório que apresentara ao Conselho Superior de Higiene. O torvelinho de aconteceres até ao final desse ano é a é a história galopante de uma epidemia que atingiu mundialmente a população humana, e que teve índices de mortalidade em Portugal – e no resto do mundo – superiores aos «mortos da Grande Guerra». Estes estiveram sempre presentes na nossa memória por via do acontecimento de Guerra Mundial, facto público transformado em pedra memorialista de todas as nossas cidades. Mas os mortos da pneumónica não tiveram mural de memória; foram encobertos pelas honras nacionais e militares ao soldado desconhecido. Memória que ficou na esfera privada das vivências de famílias, e na contabilidade de estatísticas demográficas e de saúde pública.

Interessante que Ricardo Jorge – figura determinante durante a Pneumónica em Portugal – sobreviveu à Guerra e à Gripe, não seja uma figura de longa duração nos anais do panteão imaginário da memória nacional.

Após o fim declarado oficial da pandemia, vamos encontra-lo ativo, no contexto internacional da Sociedade das Nações / Liga das Nações lidando com as questões de saúde pública para serem delineadas a nível nacional e internacional, cada vez mais consertadas e conectadas. Para isso era necessário estudos, relatórios, como o que Ricardo Jorge apresenta à «Commission Sanitaire des Payes Aliés», em 1919, como imagem 2 nos evidencia.

É o tempo de fazer cruzar políticas internacionais de higiene e saúde pública com a Sociedade das Nações (SDN). Os desastres de Guerra, o vírus que desestruturou exércitos, por terra e por mar, o poder biopolítico de Saúde & Higiene dos Estados, determinaram a sua integração na Liga das Nações, renovando o velho Office International d’Hygiene Publique, criado como «uma ideia» em 1907, alocado em Paris em 1908. A Pneumónica ocorre durante a vigência deste mecanismo internacional de Higiene Pública, quase como um laboratório não previsto, não acautelado, não planeado. Num tempo imediatamente após 1918, vamos continuar a encontrar Ricardo Jorge como médico sanitário e política de diplomacia científica e saúde pública nos comités que providenciavam desenvolver – e impor – protocolos de procedimentos mundiais face ao perigo de epidemias, «pestes incontroláveis» que avassalavam os Estados e depauperavam a população nacional de cada um! 

 

Imagem 2: La Grippe, Rapport préliminaires présenté à la Commission Sanitaire des Payes Aliés, dans la session de mars 1919. Lisbonne, Imprimerie National, 1919

É neste contexto de diplomacia sanitária que o encontramos, em 1926, no «Bureaux International», para apresentar, na qualidade de membro representante do Estado Português, mais um relator, desta vez sobre Les Pestilences et la Convention Sanitaire ao Comité d’Hygiène de la Société des Nations, seção especializada criada em de 1922, para entre os representantes dos Estados planear o terreno da prevenção e (possível) controle (teórico) de surtos epidémicas. Ricardo Jorge, enquanto membro deste Comité da Sociedade das Nações, empreendeu várias viagens até ao final da sua vida – 1939 – para estar presente nesses comités e representar cientificamente o Estado português.

O mundo havia desabado em 1918; reorganizar implicou criar redes de trabalho de saúde pública, a nível mundial. Ricardo Jorge esteve presente, deixou marcas que a memória do volver dos anos foi apagando e dissipando. O presente das nossas vivências obriga-nos a olhar o passado, de forma ativa e epistemológica e a aprender a interiorizar a rede de organismos internacionais que aprofundaram o trabalho de diplomacia política e de saúde pública mundial. O percurso de Ricardo Jorge – antes/durante/depois – do cataclismo demográfico da Pneumónica pode ajudar-nos a escolher informação com que somos, hoje, confrontados, invadidos.

Saibamos cumprir o que é imposto pelas vozes de comando de saúde pública: local, regional, nacional, europeia, mundial. Ordem OMS «fique em casa»!

 

* Maria de Fátima Nunes

Professora do Departamento de História da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora

Investigadora do Instituto de História Contemporânea | Coordenador científico do G.I.Ciência-CEHFCi-UÉ

 

 

Publicado em 30.03.2020