Évora 1808. O Saque da Igreja e Colégio do Espírito Santo

por Francisco Vaz

É como historiador, e portanto olhando para o presente à luz dos ensinamentos do passado, que regressamos a este tema abordado em anteriores trabalhos, porque o nosso ofício é recordar o que facilmente cai no esquecimento. Estão nesse caso os acontecimentos vividos pela população de Évora em 1808, durante os dias 29, 30 e 31 de Julho, em que a cidade foi posta a saque pelos exército francês, comandados superiormente por Junot e nesta operação militar pelo general Loison, também conhecido pela alcunha “o maneta”. Procuramos também dar uma breve notícia do que aconteceu no Colégio do Espirito Santo durante esses dias.

Aniquilada com facilidade a resistência, os soldados franceses entraram em Évora, estabeleceram o quartel-general no Paço Episcopal, hastearam a bandeira tricolor na torre cimeira da Sé e os soldados receberam do general Loison autorização para saquear os edifícios da cidade e os montes, casais e quintas dos arredores. O alvo do saque na cidade foram sobretudo os conventos, as igrejas e outras casas religiosas. Vejamos como se desenrolou o saque à antiga Universidade dos Jesuítas.

O Colégio do Espírito Santo estava desde 1776 entregue aos Frades da Terceira Ordem de S. Francisco, onde mantinham estudos que tinham sido renovados em 1804, por Frei Manuel do Cenáculo. De acordo com o relato feito pelo Padre Mestre do Colégio, António de Santa Rosa de Viterbo, os soldados franceses invadiram a Igreja, onde se tinham refugiado centenas de pessoas com a esperança de serem poupadas, o que de facto aconteceu pois não maltaram as pessoas, mas tiraram-lhe todo o dinheiro, e passaram a vandalizar o altar-mor, retirando o cálice do sacrário e espalhando as hóstias, roubando depois os restantes cálices, as ambulas, bem como os diademas e resplendores de todas as imagens da igreja. A atenção dos invasores concentrou-se no altar e capela de Nossa Senhora da Boa-morte, onde despedaçaram as vidraças do anteparo da imagem, puxaram o féretro para fora, arrancaram-lhe a coroa, atiraram com a imagem ao chão, quebraram-lhe as mão e furtaram-lhe 13 anéis (dos 15 que tinha). Na capela da Senhora encontraram três depósitos, que por precaução tinham sido ai colocados, naturalmente para evitar o roubo, um de um particular, outro de esmolas dos fiéis à Senhora da Boa-morte, e o das pratas da Senhora da Natividade, que era venerada na ermida defronte da Cadeia dos estudantes. Damos a palavra ao relator do saque, que presenciou estes atos, escondido no púlpito da igreja, e avaliou os montantes do roubo no altar e capela: “as joias de Nossa Senhora da Boa-morte andariam na volta de quinze moedas de ouro, o depósito de esmolas dos seus devotos passava de duzentos mil réis, os pertences de Nossa Senhora da Natividade fariam o cômputo de três mil cruzados, o da pessoa particular passava de cinco mil cruzados” (Silva, in Vaz, 2008, p. 140).

Os franceses invadiram o Colégio logo na tarde do dia 29 e o saque terá durado 15 horas, durante as quais esquadrinharam todas as dependências, diligência em que obrigaram o porteiro, Frei Pedro, a orientá-los durante a noite. E deste modo, roubaram todo o dinheiro e utensílios que os frades tinham nas celas. Preocupa-se o relator também em demonstrar a piedade e reverência, com que eclesiásticos e populares logo no dia 30 procuraram as hóstias, as “Sagradas Formas”, que tinham sido espalhadas pelos franceses na igreja. É um aspecto comum a outros relatos; os franceses são considerados “ateus e jacobinos”, por não respeitem os locais de culto e particularmente não respeitarem o Santíssimo Sacramento.

Terminemos recordando que Junot ao chegar a Lisboa, em 1807, prometeu a liberdade e felicidade ao povo português, com a proteção do “grande Napoleão”. Ontem, como hoje, as guerras invocam a liberdade como padroeira, mas os horrores que espalham depressa levam os povos a preferir a paz e segurança, mesmo que o preço seja pago a troco da liberdade. O caminho para conciliar estes direitos fundamentais não é fácil, mas recordando as ideias de Karl Popper, devemos partir pra o desconhecido e o incerto, usando a razão, e como racionalistas devemos privilegiar o diálogo para dirimir os conflitos e aproximar os povos.

Publicado em 02.12.2019