Quão bem conhecemos as coleções de origem africana? Investigadores da UÉvora exploram dinâmicas sociais das expedições científicas na África do século XIX
Embora invisibilizado pela ciência europeia e ignorado pela historiografia por muito tempo, é inegável o contributo dos africanos que viajaram com os exploradores europeus no século XIX para a construção do conhecimento científico e a formação das coleções resultantes dessas expedições. Desvelar essa “rede dos invisíveis” e propor uma reavaliação da prática científica de campo no século XIX e das contribuições das comunidades locais motivou um grupo de investigadores do Instituto de História Contemporânea (IHC) e do Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território (IN2PAST) da UÉvora a embarcar no projeto KNOW.AFRICA (ref. FCT - 2022.01599.PTDC).
“Redes de conhecimento na África oitocentista: Uma abordagem das humanidades digitais dos encontros coloniais e do conhecimento local nas narrativas de expedições portuguesas (1853-1888)” é o mote do projeto que, através da análise a quatro expedições portuguesas a África, pretendeu desmistificar a ideia do viajante heroico e solitário, enfocando a sociabilidade do trabalho de campo para revelar como grupos nativos auxiliaram os viajantes no processo europeu de conhecimento da natureza africana.
“Através de uma análise às expedições de F. Welwitsch (1853-1860), H. Capelo e R. Ivens (1877-1880 e 1884-1885) e H. Carvalho (1884-1888), viagens oficiais financiadas pelo governo português com o objetivo de explorar a paisagem natural do continente africano, conseguimos encontrar evidências do papel preponderante dos agentes locais na formação do património científico europeu, tais como herbários, coleções zoológicas, objetos etnográficos”, destaca Sara Albuquerque, investigadora em História da Ciência no IHC e no IN2PAST da UÉvora e Investigadora Principal do projeto KNOW.AFRICA.
“Tivemos como principal objetivo atingir a dessacralização da ciência e dos cientistas, entrando pelo campo dos atores secundários, daqueles ditos «invisíveis»”, salienta Maria de Fátima Nunes, co-investigadora principal do KNOW.AFRICA e docente do Departamento de História da UÉvora. Através deste projeto foi possível determinar que, apesar das assimetrias sociais no espaço colonial, os naturalistas se inseriam em processos sociais e históricos amplos, nos quais o conhecimento circulava entre império e colônia, através de relações sociais que se formavam em campo, numa sinergia na qual os viajantes dependiam do apoio de redes locais. “Os agentes locais constituíam, de facto, pontos permanentes de apoio aos europeus em Angola e era preciso tirá-los da penumbra, atribuir-lhes o devido reconhecimento. Falamos dos caçadores, tradutores, curandeiros, que contribuíram para o conhecimento científico e que não foram devidamente referenciados, eram invisíveis”, explica Sara Albuquerque.
“Este conhecimento do que é realidade no território africano, nas suas várias vertentes de práticas científicas, permitiu refletir sobre as qualidades que tornavam certos colaboradores em presenças assíduas em expedições científicas, para isso, analisámos relatos escritos pelos naturalistas, correspondências e artigos publicados em jornais contemporâneos às expedições”, desvenda Maria de Fátima Nunes. “Podemos afirmar que não existem cientistas solitários, mas sim uma rede colaborativa que contribui para o conhecimento. A ciência não se faz sozinha”, destaca Sara Albuquerque.
Através da articulação entre os métodos utilizados nas ciências humanas com o mundo digital, o projeto KNOW.AFRICA beneficiou da aplicabilidade prática das humanidades digitais e do seu potencial para a disseminação de conhecimento. “Através das humanidades digitais, que combinam as metodologias tradicionais das humanidades com novas ferramentas digitais, como programas de visualização de redes e softwares de criação de mapas georreferenciados, conseguimos aceder a novas formas de leitura e documentação histórica que nos permitiram, no projeto KNOW.AFRICA, detetar uma rede de relações entre ciência, política e colonialismo no século XIX”, realça Anderson Antunes, investigador do IHC da UÉvora. “Obtivemos, por exemplo, informações que são de natureza textual, iconográficas, cartográficas, e ainda os próprios espécimes que faziam parte das expedições científicas portuguesas. Assim, através das humanidades digitais, utilizámos ferramentas que nos permitiram, num ambiente integrado, trabalhar um grande volume de informação”, conclui Anderson Antunes.
Para Maria de Fátima Nunes, co-investigadora principal do KNOW.AFRICA, “as humanidades digitais permitiram que o mundo europeu entrasse em contacto visual com uma instrumentação de investigação daquilo que está em África”, o que foi fundamental para o propósito inicial do projeto que almejava “ocupar um lugar no espaço público”.
Os resultados alcançados pela investigação científica desenvolvida pela equipa multidisciplinar do IHC-UÉvora, com experiência em História das Ciências, Museologia, Divulgação Científica, Humanidades Digitais e Ciências Biológicas, contribuíram para a reavaliação da participação de agentes locais nas expedições científicas e para uma maior compreensão da ciência Oitocentista.
Do projeto KNOW.AFRICA resultará uma plataforma online que reúne mapas digitais que recriam os itinerários das expedições, gráficos das redes sociais que representam as interações entre viajantes e agentes locais, bem como uma exposição virtual das ilustrações originalmente publicadas nos livros de viagem, atualmente em domínio público, e uma cronologia interativa inserindo as expedições no contexto da história de Portugal e Angola.
KNOW.AFRICA | KNOWledge networks in 19th-century AFRICA: A Digital Humanities approach to colonial encounters and local knowledge in the narratives of Portuguese expeditions (1853-1888) | ref. FCT - 2022.01599.PTDC | https://doi.org/10.54499/2022.01599.PTDC | www.knowafrica.uevora.pt
Projectos FCT UIDB/04209/2020, UIDP/04209/2020 e LA/P/0132/2020 (DOI 10.54499/LA/P/0132/2020)
