À Conversa sobre a Igualdade de Género

Numa altura em que a União Europeia se prepara para adoptar, ainda este ano, uma Estratégia para a Igualdade entre Homens e Mulheres, Adriana Martins Frias, leitora de espanhol do Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora (UÉ), e Liz Maria Telez de Sá Almeida, doutoranda do Departamento de Linguística e Literaturas da UÉ, em entrevista conjunta, recordam que “o género é a construção social e cultural do feminino e do masculino”, pelo que “haverá múltiplas ideias que irão condicionar as oportunidades, as relações sociais, as expectativas sociais de homens e mulheres”. Assim, ambas entendem que “o género é produto de um processo social e não forma parte de questões biológicas”, motivo para entender que este conceito deverá ser "repensado e transformado”. 

Como devemos entender a experiência de ser mulher hoje?

É verdade que as questões relativas aos direitos das mulheres começaram a ser faladas bastante tempo atrás. Porém, parece que ainda estamos longe de conseguir em alguns aspetos uma igualdade de género efetiva. Espaços como a Roda de Géneros que organizámos em 2019 têm todo o sentido, porque é preciso continuar a falar para perceber que, de facto, nesse “falar” reside toda a força da luta das mulheres e do próprio feminismo. É preciso criar espaços que sejam ocupados e partilhados de forma consciente e segura por mulheres de diferentes procedências nos quais seus “lugares de fala” sejam marcados e expressados com total liberdade. Nesse encontro diverso, a experiência de todas as participantes fica vinculada, o individual passa também a ser colectivo, posto que “o pessoal é também político”. Acreditamos que, como instituição pública, a UÉ deve criar pontes entre o âmbito académico e a própria sociedade e promover a reflexão nesta área.

 

Como é ser mulher em Portugal?

Como mulheres que experienciamos a realidade dos nossos próprios países e vivenciamos só recentemente a realidade portuguesa, deixamos aqui alguns dados para que as/os leitoras/es concluam, baseados nestes e nas suas experiências:

 - Segundo dados da “Fundação Francisco Manuel dos Santos” levantados até 2016 e publicados no estudo Igualdade de género ao longo da vida (Anália Torres, coord., 2018) a precariedade penaliza mais as mulheres do que os homens em quase todas as idades, o que significa trabalhos de menor qualidade e salários mais baixos;

- Segundo os dados mostrados pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) em Portugal na publicação Igualdade de Género em Portugal: indicadores-chave 2017, há um diferencial de 16,7% de remuneração base mensal entre homens e mulheres. Para além disso, este diferencial salarial aumenta quanto maior é o nível de qualificação. Também segundo a CIG, as mulheres continuam a dedicar mais tempo (em média, 1h e 45 minutos) ao trabalho não pago (tarefas domésticas e de cuidado) do que os homens;

- No que diz respeito à violência, as principais vítimas de violência doméstica são mulheres (80%), assim como também são majoritariamente as mulheres que sofrem abusos sexuais na infância ou adolescência (81,3 %) ou violações (90,5%), segundo também indica a CIG. 

 

A que tipo de preconceitos estão ainda hoje as mulheres sujeitas? 

Há ainda muitos preconceitos que condicionam a vida das mulheres. Por exemplo, vamos pensar em todas as ideias que ainda hoje constrangem o corpo da mulher. A imagem de beleza da mulher socialmente é só uma, criada especificamente para satisfazer o olhar masculino e imposta sobre os corpos diversos de todas as mulheres. Os estigmas construídos sobre os estereótipos, criados por não estar dentro dessa imagem canônica patriarcal, oprimem e marginalizam corpos que desses padrões construídos se distanciam. Isto tem influência em questões como o peso corporal (obesidade, bulimia, etc.), contudo chegam a gerar problemas ainda mais graves de saúde pública como a depressão, para ficar somente neste exemplo.

Para além disso, existem inúmeros preconceitos relacionados com o que é ser mulher que, sendo construções sociais e culturais, são percebidos como se fizessem parte da biologia das mulheres. Essecialismos tais como a delicadeza, a sensibilidade, a tendência para as tarefas do cuidado são estereótipos que limitam o sentido do “ser mulher” ainda hoje.

Há também a crença de que mulher só fica completa quando é casada e tem filhos. As questões do matrimónio e da maternidade tornam-se uma norma social imposta que exerce pressão sobre as decisões nas vidas de muitas mulheres, sobretudo àquelas que a essa não se adequam. Todos estes preconceitos, ideias, crenças e outros devem ser refletidos e desconstruídos.

 

Como o género pode condicionar a vida e a carreira?

O género é a construção social e cultural do feminino e do masculino. Isto quer dizer que haverá múltiplas ideias que irão condicionar as oportunidades, as relações sociais, as expectativas sociais de homens e mulheres.

No caso das mulheres, isto acontece desde o nascimento. Como uma menina é educada de acordo com os pressupostos e expectativas sociais sobre o feminino marcará a maneira de ela se relacionar com o mundo e com os outros.

A carreira profissional está marcada também pelo género quando, no geral, se compreendem  algumas profissões como mais feminizadas do que outras. Por exemplo, as áreas de educação, da Saúde e Proteção Social são mais escolhidas pelas mulheres, em comparação com outras áreas como as da Engenharias ou Indústria. É importante questionar esses dados e refletir sobre os condicionamentos sociais, culturais e educativos que levaram até esses resultados.  

Para além disso, é preciso considerar como é que as mulheres integram o mercado laboral. Em Portugal, e na Europa no geral, há uma grande parte das mulheres que realiza trabalhos em tempo parcial. A conciliação entre trabalho e vida laboral sempre é mais complicada e o número de horas dedicado ao trabalho não pago é sempre superior no caso das mulheres.  A divisão do tempo, como se pode ver no livro Os Usos do Tempo de Homens e Mulheres em Portugal (2016), é desigual e prejudica a gestão do tempo das mulheres, pois a torna desigual. O próprio sistema do mercado laboral acaba por favorecer sempre os homens e por relegar às mulheres a condições mais precárias. Mas o género é produto de um processo social e não forma parte de questões biológicas. E é por isso que deve ser repensado e transformado. 

 

Ainda podemos falar de um mundo de homens, ou é um equívoco?

A mudança anda em curso, no entanto, este é, de facto, ainda um mundo de homens. O patriarcado manifesta-se na divisão sexual do trabalho que forma parte da organização da família, no controle sobre o corpo das mulheres (em forma de violência, de exigência sobre a adequação a uma imagem de beleza determinada, etc.) e no sistema capitalista.

As narrativas de poder atuais, embora estejam a ser refeitas e reformuladas por inúmeras mulheres, são ainda masculinas. Pensemos na filosofia, na história, na justiça, na literatura… No mundo literário, por exemplo, ainda nos dias atuais as obras de muitas escritoras são valorizadas desde um ponto de vista relativo, como se as suas criações tratassem “só” de “questões de mulheres” e não de questões humanas. O ponto de vista masculino situa-se como absoluto, objetivo e Uno e o feminino passa a ser relativo, subjetivo, o Outro.

É verdade que cada vez mais alguns espaços de poder estão a ser conquistados por mulheres. Mas a este respeito, é interessante perguntar-se o que é o poder e onde reside realmente.

 

Nota: Liz Maria Telez de Sá Almeida, doutoranda do Departamento de Linguística e Literaturas da UÉ, e Adriana Martins Frias, leitora de espanhol do Departamento de Linguística e Literaturas da UÉ, organizaram em 2019, o Encontro «Roda de Conversa Sobre Género» com o objetivo de oferecer um espaço de reflexão aberto a tod@as para refletir sobre a experiência de ser mulher.

Publicado em 18.02.2020