Entrevista a Felismina Mendes

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“Há uma verdadeira fobia social generalizada relativamente ao envelhecimento seja individual, seja coletivo. Glorifica-se a juventude e esconde-se o envelhecimento” realça Felismina Mendes, especialista na área da saúde comunitária e familiar e na promoção do envelhecimento saudável da Universidade de Évora. Questionada se estamos a envelhecer com mais saúde, em ambientes mais seguros e mais ativos, a diretora da Escola Superior de Enfermagem S. João de Deus da Universidade de Évora reconhece que “avançámos bastante” nesta matéria, “mas não o suficiente para nos aproximarmos dos países do norte da Europa”, pelo que é da opinião que deverá haver um “esforço e um investimento grande, por parte das políticas de saúde na promoção do envelhecimento saudável/ativo”.

Os desafios e a valorização da enfermagem, as praxes académicas, ou ainda a colaboração com o Hospital Distrital de Évora são temas aos quais Felismina Mendes dá resposta, anunciando ainda nesta entrevista a proposta para a criação do curso de 3º ciclo na área das ciências da saúde e bem-estar, com 3 eixos centrais (enfermagem, tecnologias da saúde e envelhecimento).

É mestre em Ecologia Humana pela Universidade de Évora (1994) e Doutorada em Sociologia pelo ISCRE/IUL. A Enfermagem era algo que fazia parte dos sonhos de infância?

Não, de forma nenhuma. Os meus sonhos de infância passavam todos pela atividade e/ou exercício físico. Claramente correr, correr muito, subir e descer tudo o que aparecesse pela frente, jogar futebol, andebol, ficar à frente ou ganhar aos rapazes era o que me motivava. Pensava que quando fosse grande ia ser atleta. A enfermagem vem depois por contingências socioeconómicas – era um curso que existia em Portalegre e Évora e eu não precisava de ir para Lisboa, que era bem mais oneroso. Optei por ir para a Escola de Enfermagem de Portalegre, porque no ano em que me candidatei, o curso não abriu em Évora.

 

Mas houve alguma influência familiar para a área da saúde?

Não de todo. Ninguém da minha família próxima esteve alguma vez ligada à área da saúde. Era um curso de 3 anos, com saídas profissionais imediatas. Foi o que presidiu à decisão. Depois de concluído o curso e começar a trabalhar, poderia encarar novas opções, o que aconteceu, apesar de nunca mais ter deixado a enfermagem.

 

Entretanto doutorou-se em Sociologia. Como entra a Sociologia e a Sociologia da Saúde no território da Enfermagem?

A sociologia e a sociologia da saúde entram muito facilmente nos territórios da enfermagem e da saúde, porque são a abordagem que permite desconstruir todo um conjunto de estabelecidos e de verdades incontestáveis e simultaneamente permite novos olhares que nos dão uma perspetiva diferente destes universos. E o que me cativou na sociologia primeiro e na sociologia da saúde mais tarde, foi precisamente essa outra visão e abordagem dos fenómenos que integram o universo da enfermagem e da saúde, a começar pela própria definição de saúde ou do que é a doença, o que é estar doente, as normas da promoção da saúde, o poder médico e ou as hierarquias de poderes que se estabelecem nas unidades de saúde, os símbolos distintos e distintivos que operam nos serviços, deste as batas aos instrumentos que ilustram e reforçam a posição de cada um nas hierarquias de poder, a ocupação dos espaços e os interditos na instituição hospitalar, o avanço da medicalização a todas as áreas do vida, desde o nascimento à morte, a presença constante do médico como figura de referência no nosso quotidiano, o simbolismo, a iconografia e o medo associado acertas doenças de que o cancro é o paradigma maior, a impotência da medicina perante as doenças crónicas, o lucro dos laboratórios farmacêuticos ao interferirem na definição e redefinição dos valores analíticos de referência ou das próprias doenças...e ainda a noção que a doença tem uma dimensão histórica e social, muito mais marcada que a sua dimensão biológica. Ou seja, cada época social e histórica tem as suas doenças e os seus doentes. Não se trata de uma simples evolução, é bem mais complexo e desafiante.

 

Que permitirá certamente aos enfermeiros olhar o mundo social com uma lente mais interpretativa?

Sim, sem dúvida. Mas é preciso salientar que os modelos de referência da enfermagem, quer o biomédico ou clínico ou cuidativo, são tão fortes que tendem a ocultar ou a menosprezar outras lentes interpretativas. Quando se ouve dizer durante 4 anos que a Saúde é o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social e não apenas a mera ausência de doença, como refere a Organização Mundial de Saúde (OMS), quem vai questionar? Dos enfermeiros e enfermeiras continua ainda a esperar-se fundamentalmente o domínio perfeito de competências práticas – o tecnicismo e a tecnologia de apoio aos cuidados dominam o imaginário de todos os estudantes e da maioria dos enfermeiros. Claro que a perícia técnica é obviamente importante, mas não devia sobrepor-se à análise reflexiva e crítica do seu contexto de trabalho, das suas práticas profissionais e dos modelos que as sustentam ou das políticas que as enquadram. A sociologia e a sociologia da saúde dão-lhes essas ferramentas, mas são poucos que as usam para questionar e/ou decifrar ou interpretar os antigos e atuais contextos de saúde em que estão inseridos (desde as rotinas instaladas há séculos, aos novos modelos de cuidados, as novas tecnologias, ou os velhos métodos, práticas e protagonismos que perduram insensíveis aos novos doentes, às novas necessidades e à mudança está sempre a ocorrer). 

 

Estas são áreas que têm norteado a sua carreira enquanto professora e investigadora na Universidade de Évora; nomeadamente a Saúde Comunitária e Familiar bem como a Promoção do envelhecimento saudável. São estas ainda pouco estudadas em Portugal? Em que medida são importantes para os estudantes?

Estas são áreas estudadas em Portugal, nomeadamente todas as questões relacionadas com o processo de envelhecimento e essencialmente a importância da promoção do envelhecimento saudável, porque é uma questão central para que se consiga que as pessoas efetivamente envelheçam com saúde. Em 2017, na Suécia as pessoas depois dos 65 anos vivem mais 15,8 anos com saúde, em Portugal esse número é de 6,7 anos. Ora esta tendência terá que ser invertida e têm existido alguns esforços nesse sentido por parte dos poderes públicos. E nós temos tentado contribuir para o conhecimento sobre esta questão através de estudos que nos ajudem a compreender o que é necessário fazer, ou onde intervir para um envelhecimento com saúde. Os estudantes de 1º ciclo têm uma aproximação mais ténue à investigação, mas neste momento compreendem o seu valor e participam ativamente quando são chamados. Os estudantes de 2º ciclo já têm uma postura mais interventiva e ativa, afinal eles próprios desenvolvem as suas primeiras investigações no âmbito dos cursos de mestrado e aquilo que temos tentado é incutir-lhes o interesse pelo estudo destes temas estratégicos para a região e para o país. Mas sim, estes são temas a que os estudantes aderem e compreendem a importância de se aprofundar o conhecimento nestas matérias.

 

Em que domínios assenta a ESESJD as suas atividades de investigação, e que resultados destacaria?  

São diversas, ou seja: Enfermagem; Envelhecimento; Novas tecnologias aplicadas à saúde e nas Políticas e Modelos de Cuidados de Saúde. Destaco dois projetos, pela sua amplitude: o ESACA - que teve resultados, nomeadamente uma Patente de um Kit potencialmente comercializável (Kits com testes e dispositivos multimédia de avaliação, diagnóstico e prescrição de medidas/programas preventivos).

O Modelo Dinâmico de Intervenção para Prevenção de Quedas em Idosos não Institucionalizados (MDIPQnI) – Algoritmo, o Modelo de Segurança para Prevenção de Lesão por Queda em Idosos Institucionalizados e/ou Internados (MSPLQII) – Algoritmo; Modelo Integrado de Prevenção da Violência sobre Idosos - Algoritmo, Manual e Plano Regional de Prevenção da violência; Software para diagnóstico do risco e perfil individual de intervenção nas quedas e lesões em idosos institucionalizados e não institucionalizados; Software de determinação do perfil individual de risco de violência. E ainda: Aumentar a segurança dos idosos do Alentejo; Diminuição das quedas e consequentes lesões, bem como da violência exercida sobre os idosos e a Produção dos indicadores/evidência científica. O projeto 4IE - Aprofundar aspetos relacionados com o envelhecimento, nomeadamente a solidão, a violência, as expectativas de atendimento e os itinerários terapêuticos; Soluções tecnológicas para melhorar a qualidade de vida e o bem-estar dos idosos; Novos modelos de cuidados ao idoso, que aproveitem as novas tecnologias para facilitar o processo de envelhecimento nas áreas rurais; Aplicação do conhecimento obtido na definição de políticas públicas; Contribui para a sustentabilidade e eficiência do sistema e serviços públicos e para a melhoria dos indicadores de saúde e bem-estar.

 

Podemos afirmar que envelhecer é uma arte, como diz a canção de Sérgio Godinho?

Envelhecer pode ser uma arte. Mas não é só isso... ou, é mais do que isso.

Os determinantes sociais e económicos do envelhecimento têm um peso que é decisivo. Veja-se o que acontece nas sociedades do norte da europa e o que acontece nas do sul. Ou então, nos países mais desenvolvidos e nos países menos desenvolvidos, ou ainda nos grupos sociais mais favorecidos e menos favorecidos. Considero que o processo de envelhecimento deve ser preparado com antecedência e que as pessoas têm que aprender/no sentido de aceitar ser ensinadas a usufruírem do envelhecimento com saúde e bem-estar. Ora isso não acontece ainda. Há uma verdadeira fobia social generalizada relativamente ao envelhecimento seja individual, seja coletivo. Glorifica-se a juventude e esconde-se o envelhecimento. Toda a sociedade funciona para os jovens, não para os idosos. Do vestuário à alimentação, dos gadgets aos ritmos quotidianos tudo é pensado para um mercado consumidor jovem. Apesar de em países como o nosso, os idosos serem quase maioritários, pensa-se pouco neles. Aliás diria que os investigadores são os que mais se preocupam com eles. Mas mesmo aí, muitos dos resultados do nosso trabalho serão mais úteis às futuras gerações de idosos, do que à atual.

Envelhecer é um processo que deve ser preparado ao longo do tempo, mas para as pessoas que hoje têm 50 ou 55 anos, se lhe falarmos nisso, dirão que não têm tempo para tal coisa e até podem sentir-se ofendidas, por já as considerarmos idosas. O que não é de todo o caso. A questão é que o envelhecer é uma noção abstrata para todos. Mais, como dizia a Simone de Beauvoir, todos se recusam a reconhecer o velho que serão. 

Considero que deve haver um esforço e um investimento grandes, por parte das políticas de saúde na promoção do envelhecimento saudável/ativo para sensibilizar, informar, formar e preparar as pessoas para um envelhecimento com saúde, ativo e participado. Da mesma forma que se promove a educação sexual, ou a prevenção do HIV/SIDA, devem ser acionadas campanhas de envelhecimento ativo. Aliás a estratégia nacional do EA foi concluída em 2017 ou 2018, mas não passou do papel. De qualquer forma, e recorrendo à sociologia da saúde, há que questionar se o EA deve ser entendido com um direito ou um dever, porque na saúde facilmente os direitos se transformam em deveres para as pessoas, que passam a ser penalizadas porque não cumpre o seu dever de envelhecer ativa e saudavelmente, desresponsabilizando as autoridades de saúde. O que está em causa é que a muitos não chega a informação, ou chegando não têm capacidade para a descodificar e entender. É sempre bom lembrar que ainda nem todos temos o mesmo nível de literacia para entender a importância das questões associadas à saúde. O envelhecimento ativo/saudável é uma delas.

 

A saúde, segurança e participação social são considerados os pilares do envelhecimento ativo. O que dizem os estudos a este respeito? Estamos a envelhecer com mais saúde, em ambientes mais seguros e mais ativos?

Em Portugal foi elaborada a estratégia do Envelhecimento Ativo [Estratégia Nacional para o Envelhecimento Ativo e Saudável] como já salientei que contempla todas essas dimensões. Claro que temos vindo a envelhecer com mais saúde, porque sempre que o desenvolvimento socioeconómico avança, os diferentes indicadores de saúde acompanham esse desenvolvimento. Já avançámos bastante, mas não o suficiente para nos aproximarmos dos países do norte da Europa nesta matéria. A saúde dos idosos em Portugal é maioritariamente frágil, a segurança um problema, seja pelo ambiente habitacional (os pisos escorregadios, os móveis com alturas padrão, o uso indevido de apoios sem proteção, os degraus, os tapetes sem fixação, a deficiente iluminação, as dificuldades visuais não corrigidas) seja na comunidade (os passeios altos, os pisos irregulares, os passeios esburacados, os pisos escorregadios) e as quedas elevam a morbilidade e mortalidade de muitos idosos em Portugal. Da mesma forma o isolamento propicia atos de violência sob as mais variadas formas. Também a segurança ao nível da medicação motiva acidentes frequentes.

A participação é outra dimensão em que ainda há um longo caminho a percorrer, porque basicamente os idosos em Portugal vivem na completa solidão e isolamento, sem voz e, portanto, não exercem a sua cidadania ativa. Também aqui é uma questão desenvolvimento, humanidade e de literacia. Desconhecem os direitos que têm e também os deveres...resta a omissão. São mal atendidos na maioria dos serviços, são empurrados de um lado para o outro, sem alguém lhes perguntar a sua opinião.

Do outro lado, a maioria das pessoas desconhecem como atendê-los ou não compreendem as suas dificuldades, não têm paciência para os seus ritmos... Enfim, há muito por fazer no EA, em Portugal.

 

A este respeito, em que medida têm contribuído o sector social e o sector solidário no nosso país?

Considero que tem sido feito algum trabalho, mas ainda muito aquém do que era esperado. Muitas respostas sociais para pessoas idosas cumprem o básico. Lamento dizê-lo, mas neste momento o EA ainda não faz parte deste pacote básico. Cabe ao estado através das políticas de segurança social e saúde determinar a inclusão do EA como um dos cuidados básicos a serem prestados às pessoas idosas. Saliente-se que neste domínio os municípios têm respondido de forma bem mais pró-ativa, do que muitas instituições do setor social ou solidário, a quem o estado delega maioritariamente os cuidados às pessoas idosas.

 

Que balanço faz do seu mandato como diretora da Escola Superior de Enfermagem S. João de Deus da Universidade de Évora?

Depois de rever as principais linhas de meu mandato, penso que atingi a maior parte delas. No entanto, há outras que não estão alcançadas, longe disso e não será neste ano que falta que as vou conseguir alcançar, como é o caso do: Desenvolvimento e dinamização da investigação em enfermagem/enfermagem especializada/ciências da saúde. Estimular, incentivar e apoiar candidatura às diferentes calls nacionais e internacionais; Estas são particularmente importantes para a Escola e para Centro de Investigação que alguns docentes da Escola integram e apara ancorar o 3º ciclo que se aproxima.

Relativamente às outras, penso tê-lo conseguido, pelo menos em parte: Reforçar e consolidar a afirmação da ESESJD na região, no país e internacionalmente; Desenvolver e valorizar a oferta formativa graduada e pós-graduada – antecipar necessidades e responder aos novos desafios com rigor, eficácia e eficiência; Estimular a internacionalização – estudantes, docentes e funcionários não docentes; Aprofundar e consolidar as ligações à comunidade – com a implementação e monitorização de projetos de médio e longo prazo e reforçar; Aprofundar parcerias e redes científicas internacionais - espaço europeu e ibero-americano.

 

Sobre a oferta formativa ao nível do 3.º ciclo na área da enfermagem, em que moldes e quando se prevê a abertura do mesmo?

Vamos propor a criação do Curso de 3º ciclo na área das ciências da saúde e bem-estar, com 3 eixos centrais - enfermagem, tecnologias da saúde e envelhecimento, ancorado no CHRC [Comprehensive Health Research Centre]. O objetivo será a sua abertura no ano letivo 2021/2022 e os parceiros serão a UNL (Universidade Nova de Lisboa) e a UEx (Universidade de Extremadura, Espanha).

 

O que distingue o(s) Curso(s) de Enfermagem na Universidade de Évora?

A Qualidade de ensino ministrado, a exigência, rigor e o trabalho de proximidade realizado com os estudantes. São tradição desta Escola e considero que todas contribuem com o mesmo peso.

 

Alguns dos cursos estão organizados em associação com diversas IES portuguesas. Que vantagens apresenta este modelo?  

Esta estratégia de trabalho em associação entre instituições de ensino superior concorrentes entre si, resultou da noção de que o esforço conjunto tem o potencial para acrescentar valor e melhorar o resultado final. Permite reforçar sinergias e responder às exigências da A3ES [Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior] e OE.

 

O ensino clínico é outra marca da ESESJD. Como avalia a colaboração entre a ESESJD e o Hospital Distrital de Évora (HESE)?

Excelente, mas como em todas as relações duradouras, tem os seus altos e baixos...Mas sem dúvida que a colaboração tem sido decisiva para a Escola, tal como a colaboração da ARSA [Administração Regional de Saúde do Alentejo] e do ACES Alentejo Central. [Agrupamento de Centros de Saúde do Alentejo Central].

Mas falando de colaborações para os Ensinos Clínicos não posso deixar de agradecer publicamente a todos os outros hospitais e unidades de Saúde do âmbito dos Cuidados de Saúde Primários, por todo o país, mas essencialmente na zona de Lisboa e Vale do Tejo e Algarve que têm recebido os nossos estudantes de 1º e 2º ciclo. A colaboração de todos tem sido decisiva para alcançarmos os nossos objetivos. Ao HESE e a todas as instituições que têm recebido os nossos estudantes o meu público agradecimento.

 

Todos os anos o tema das “praxes académicas” surge na comunicação social, mas nem sempre pelos melhores motivos. Na ESESJD, pelo contrário, as praxes são associadas a ações solidárias e integradoras. É também fruto do empenho da direção da ESESJD?    

A Diretora é anti praxe e todos os estudantes o sabem. Se há praxes então que tenham um sentido diferente... A direção empenha-se sempre para que as coisas tenham um sentido positivo e mantem um diálogo aberto e permanente com os estudantes fazendo-os perceber que se algo correr mal, são tão prejudicados os caloiros como aqueles que fizeram a praxe. E que estes últimos serão sempre claramente responsabilizados, a todos os níveis, pelo que correr mal.

Obviamente que se pretende que tudo corra bem, mas colocar pressão sobre quem defende práticas de dominação e exercício puro e duro de poder, é uma forma de se manterem vigilantes, enquanto responsáveis por tais práticas. Aliás a duração das praxes na ESESJD é de 2 semanas. Nunca percebi porque duram até ao dia 1 de novembro nas restantes Escolas da UÉ... Sim a tradição... Mas incompreensível, de qualquer forma. A própria cidade se cansa de tais atos e do seu tempo de duração.

 

Quais as principais dificuldades para quem quer iniciar a carreira na enfermagem?

É fácil iniciar... Mas o vencimento está longe de ser o merecido, os horários de trabalho são desgastantes, as condições de trabalho (recursos físicos, técnicos, humanos) deixam a desejar em muitos serviços quer hospitalares quer de CSP [Cuidados de Saúde Primários]. Claro que também há outros serviços onde se encontram as melhores condições de trabalho. É uma realidade heterogénea e que depende de unidade para unidade. De qualquer forma há dificuldades que atravessam todo o espetro de trabalho do enfermeiro – o salário e alguma degradação das condições de trabalho no setor público e também no privado. Não se pode conceber que se critique a falta de profissionais e/ou condições num determinado serviço público e se aceitem no setor privado, não denunciando a situação.

Mas no geral, e sobretudo sendo formado numa Escola como a nossa, é muito fácil iniciar a sua carreira de enfermagem. Os nossos ex-estudantes são testemunho do que afirmo. Um mês ou mesmo antes, após terminarem o curso, a maioria dos estudantes recém-formados da ESESJDUE está a trabalhar em instituições do SNS [Serviço Nacional de Saúde] ou no setor privado.

 

Que desafios enfrenta a enfermagem e que medidas deviam ser tomadas para benefício deste grupo profissional? 

O principal desafio dos enfermeiros é a afirmação social da Enfermagem, mediante o reconhecimento social do papel dos Enfºs na saúde. Exige trabalho por parte dos enfermeiros, mas não pode ser de outra forma. Valorização social do enfermeiro e da enfermagem – Será alcançada quando todos compreenderem que mais do que estar 24 horas com o doente, têm que efetivamente afirmar-se pela qualidade e valor acrescentado dos cuidados que prestam. O slogan “nós enfermeiros estamos 24 horas com o doente” é útil, mas está esgotado. A sociedade, as famílias, os indivíduos, querem cuidados de qualidade – escuta, atenção, presença, perguntas que são respondidas; orientações/indicações claras concisas e objetivas, respostas adequadas à capacidade de entendimento de cada um. Na sociedade atual, já não é suficiente ser-se um bom técnico. Espera-se e exige-se mais dos enfermeiros. Espera-se e exige-se o domínio de competências instrumentais, relacionais, comunicacionais que vão ao encontro das necessidades de saúde de uma população cada vez mais envelhecida, mas também cada vez com mais literacia em saúde. No fundo, um enfermeiro que está presente e que se afirma pelo domínio completo da sua profissionalidade, em cada momento do quotidiano de cuidados.

 

Mas há certamente outros?

O outro desafio é a valorização socioprofissional do percurso académico dos enfermeiros (título e graus) - Hoje essa valorização não existe e o pior é que parece não se sentir a sua falta no universo profissional. A enfermagem deve ser das poucas profissões em que ter uma licenciatura, um mestrado, ou um doutoramento, significa na prática quase o mesmo. Isto não pode continuar a acontecer. Relativamente aos títulos (especialista), efetivamente há diferenças na designação dos profissionais que os obtém. Porém, estes profissionais passam a exercer como enfermeiros especialistas e a colocar quotidianamente em prática as suas competências especializadas, nos diferentes serviços da referida especialidade ou noutros onde as suas competências sejam necessárias? Depende. Ora nenhum profissional pode estar à mercê do depende! Que incentivos têm pelo trabalho que desenvolvem? Que perspetivas de carreira têm? Qual o reconhecimento socioprofissional que auferem? A resposta a estas questões centra-se inevitavelmente na renegociação da carreira, que é urgente e decisiva para os enfermeiros. Mas apesar de importante, esta nunca será suficiente, por si só, para a afirmação social e profissional dos enfermeiros e da enfermagem. É preciso um trabalho e empenhamento sociopolítico constante de todos os profissionais para isso ser conseguido. Irá demorar, mas chegaremos lá.

Por fim serem protagonistas centrais dos processos de trabalho – os enfermeiros têm que se assumir como protagonistas centrais na discussão dos processos de trabalho em que estão envolvidos e questionar a adequação desses mesmos processos aos desafios da saúde e da sociedade/indivíduos, na atualidade (ex. tempo gasto com os diferentes sistemas de informação nomeadamente o classificação de doentes em desfavor da efetiva presença junto dos utentes/doentes; turnos de 12 horas; normas organizacionais arcaicas que perduram em muitas unidades de saúde; papel das chefias intermédias na dinamização dos cuidados de enfermagem; papel dos enfermeiros especialistas na melhoria dos cuidados, sistema de avaliação dos enfermeiros, entre muito outros).

 

Por último, que mensagem pretende deixar aos alunos da ESESJD?

Nesta Escola formam-se profissionais para a vanguarda dos Serviços de Saúde. Optar pela ESESJD para o início da formação ou para a sua continuidade através da formação pós-graduada é sem dúvida uma aposta de e com futuro. É uma aposta na qualidade, no rigor e na excelência da formação em enfermagem e na qualidade dos cuidados que serão prestados às pessoas.  

 

Publicado em 30.10.2019