LIFE Saramugo ou a salvaguarda de uma espécie
Maria Ilhéu coordena na Universidade de Évora, desde 2014, o Projeto LIFE Saramugo, que tem como principal objetivo a conservação das populações de Saramugo em 3 sub-bacias do rio Guadiana (Xévora, Ardila e Vascão), e a consequente inversão da tendência de declínio da população de Saramugo, classificada em Portugal como “Criticamente em Perigo”.
Em entrevista ao Gabinete de Comunicação, no decurso do Simpósio para a Conversação de Peixes de Água Doce e Reabilitação de Habitats que teve lugar no Colégio do Espírito Santo de 27 a 29 de setembro, Maria Ilhéu, a investigadora do Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas (ICAAM) apresentou os resultados já obtidos no âmbito deste projeto.
Gabcom - O Saramugo está classificado em Portugal como “Criticamente em Perigo”. Que motivos levaram a este cenário e como inverter tal situação?
Maria Ilhéu - O Saramugo (Anaecypris hispânica) é um peixe endémico da bacia hidrográfica do rio Guadiana e do rio Guadalquivir, com ocorrência no território Português e Espanhol. Sendo um endemismo de duas bacias, tem naturalmente uma distribuição geográfica restrita, o que por si só eleva o seu estatuto de conservação, pois os riscos de perdas populacionais são maiores, comparativamente a espécies que têm elevada área de distribuição e que terão maiores oportunidades de recuperação face a situações de ameaça populacional. O que está a acontecer com o Saramugo em Portugal, decorre do aumento das pressões antrogénicas (originadas pela acção humana) sobre os nossos rios, conduzindo a um agravamento das condições de vida das espécie, devido à degradação de habitat e introdução de espécies piscícolas invasivas, como é o caso do achigã (Micropterus salmoides), do lucio-perca (Sander lucioperca) e do alburno ou ablete (Alburnus alburnos). O resultado do aumento destas pressões, que se combinam frequentemente, é o declínio do número de indivíduos da espécie e a fragmentação das suas populações, cada estão cada vez mais rarefeitas e isoladas.
Gabcom - A construção de barragens e açudes são o principal problema para o Saramugo?
Maria Ilhéu - O Saramugo não é uma espécie exclusiva da bacia do rio Guadiana, tal como referi anteriormente. A sua ocorrência está associada sobretudo a cursos de água de ordem intermédia, como é o caso do rio Vascão e Odeleite, os quais são importantes tributários do rio Guadiana. As albufeiras de barragem e açudes são um constrangimento muito significativo para a fauna piscícola, pois provocam grandes alterações sobre a estrutura e funcionamento dos rios tanto ao nível hidro-morfológico (perda de continuidade longitudinal, perda de diversidade de habitat, alterações no fluxo de água), como ao nível da qualidade da água, não só no troço de inundação como a jusante do barramento. Por outro lado, os barramentos que conduzem à lentificação dos rios, de forma geral tendem a configurar condições ambientais que beneficiam espécies exóticas em detrimento das nativas. O impacto destes obstáculos depende muito das suas características, se são ou não transponíveis e da forma como são geridos considerando medidas ambientais, de que são exemplo os caudais ecológicos e as passagens para peixes. No quadro da atual distribuição do Saramugo, pessoalmente considero que as barragens e açudes não constituem as principais ameaça às populações existentes, o que não significa que não devem ser consideradas como salvaguarda.
É importante ressaltar que a construção de barragens é neste momento uma ameaça grave para muitas outras espécies de peixes, nomeadamente aquelas cujo seu ciclo de vida integra grandes deslocações nas redes hídricas, como é o caso dos barbos, das enguias, da lampreia, do sável. O foco de atenção está muitas vezes orientado uma determinada espécie que apresenta um maior risco de extinção, no entanto é importante considerar a comunidade piscícola como um todo (o todo é mais do que a soma das partes), pois a integridade da comunidade pode ser uma mais-valia para a resistência individual de cada espécie.
Gabcom -E que impacto têm as espécies invasoras sobre esta espécie?
Maria Ilhéu - As espécies invasoras são um problema complexo, pois os impactos podem ser de diferentes níveis com resposta diretas e indiretas, umas mais visíveis e outras nem tanto. As ameaças são muito variadas em função das características das espécies, e podem incluir predação direta, competição e intrusão genética por hibridação. A predação por espécies como o achigã e a lúcio-perca, sobretudo em condições de confinamento como acontece nos pegos durante o verão pode construir uma ameaça considerável, assim como interações competitivas pelo habitat, com espécies como o alburno, o qual tem grande proximidade filogenética com as nossas espécies nativas e desenvolve populações muito abundantes em muitos dos nossos rios. No âmbito do projeto LIFE+ Saramugo, o alburno foi alvo de um conjunto de estudos, conduzidos pela nossa equipa da Universidade de Évora, com o objetivo de avaliar os efeitos de vários tipos interações entre espécies, que poderão comprometer as populações de Saramugo em caso de co-existência e desta forma antecipar o desenho e implementação de medidas adaptadas a este cenário, dado que atualmente as duas espécies ainda não apresentam uma ocorrência geográfica com sobreposição. O Alburno é uma espécie que apresenta um uso de habitat muito semelhante ao de algumas espécies nativas pelo que as interações podem ser de tipo múltiplas, incluindo competição pelo espaço e alimento, com manifestações muito subtis, nomeadamente através de alterações comportamentais, cuja evidência foi demonstrada em estudo recentemente desenvolvido pela nossa equipa. No imediato, um dos aspetos de maior preocupação prende-se com a possibilidade do Alburno ter compatibilidade reprodutiva com o Saramugo, a qual já foi confirmada para uma outra espécie nativa, o Bordalo (Iberocypris alburnoides), e que a acontecer com o Saramugo poderia comprometer a perda do património genético desta espécie por intrusão génica, levando à sua extinção por esta via. Os estudos realizados em condições de cativeiro não evidenciaram cruzamentos viáveis entre o Alburno e o Saramugo, no entanto esta hipótese não é totalmente descartável, pois no meio natural muitas outras variáveis podem entrar em jogo.
O conhecimento sobre os mecanismos específicos de interação entre espécies nativas e não-nativas ainda apresenta lacunas, nomeadamente em termos da identificação dos fatores que podem atribuem ao biota nativo, resistência à invasão, assim como os fatores antrópicos que o vulnerabiliza. Nesse sentido justifica-se um maior investimento tanto na ciência fundamental como na aplicada, integrando competências da área das ciências naturais com as das ciências sociais, pois a conservação do mundo natural tem cada vez mais que dialogar com as pessoas enquanto indivíduos, mas também enquanto grupos. A reabilitação dos ecossistemas e espécies, tem que incluir uma efectiva redução das pressões antrópicas e isso terá que ser feito com um trabalho muito sério do ponto de vista político e social e ambiental.
Gabcom- A ideia pode passar por criar stocks para futura libertação? Que outros mecanismos podem ser adoptados para a sobrevivência desta espécie?
Maria Ilhéu - A criação de stocks de Saramugo em cativeiro é já uma realidade. Desde a seca de 2004/2005 que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, mantem nas instalações da sede do Parque Natural do Vale do Guadiana um stock genético representativo de cada uma das populações de Saramugo. No âmbito do Plano de Ação, considerou-se que esta medida é imprescindível como garantia da sua sobrevivência no futuro, não só por garantir reservas genéticas capazes de serem suficientemente representativas da diversidade genética como também na eventualidade de reforços populacionais após a garantia da melhoria das condições de habitat.
As medidas definidas pelo ICFN são maioritariamente aquelas que estão na base do projecto LIFE+ Saramugo , de onde se destacam ações no âmbito da conservação e melhoria dos habitats da espécie, como reabilitação do meio aquático e requalificação hidromorfológica, minimização do impacto do gado nas linhas de água, controle da progressão de espécie exóticas e envolvimento da comunidade na conservação através da sensibilização ambiental e implementação de uma rede de custódia da Natureza pelo Saramugo.
Gabcom - Durante este simpósio, os investigadores vão deslocar-se à ribeira do Vascão. Aqui a espécie parece obter melhores resultados de sobrevivência. Quais os motivos para esse sucesso? Que medidas foram aqui tomadas pelos investigadores e entidades ligadas à preservação da espécie?
Maria Ilhéu - As populações de Saramugo encontram boas condições de vida em cursos de água de tipo intermitente, característico dos rios de tipo Mediterrânico, com boa integridade biofísica, elevada diversidade de habitats reofilicos e ripícolas, e relativamente boa qualidade da água, como acontece da generalidade dos troços do rio Vascão. O Saramugo é uma espécie reofílica – i.e. desenvolve o seu ciclo de vida em troços fluviais que apresentam correntes moderadas a fortes – que ocorre preferencialmente abaixo dos 350 metros de altitude, em cursos de água, estreitos (< 20m) e relativamente pouco profundos com substrato grosseiro (e.g. cascalho, pedras) e com vegetação aquática imersa. A generalidade dos troços de rio onde a espécie ainda ocorre apresentam estas características e muito baixa pressão antropogénica.
Algumas das medidas implementadas para a conservação do Saramugo em locais alvo, foram iniciadas pelo ICNF em anos anteriores, nomeadamente o desassoreamento do leito do rio e a requalificação da vegetação ribeirinha.
Gabcom - Ao nível transfronteiriço, que medidas conjuntas estão a ser assumidas para reduzir os impactos sobre a espécie? Os problemas identificados são os mesmos em ambos países?
Maria Ilhéu - Há contactos entre investigadores e instituições responsáveis pela Conservação da Natureza, mas as colaborações podem e devem ser reforçadas, tanto a nível da investigação como da implementação de ações de Conservação. Em Espanha as ameaças à conservação da espécie são muito semelhantes às que ocorrem no nosso território, no entanto, apesar do seu declínio a espécie está classificada como “Ameaçada” enquanto em Portugal está “Criticamente em perigo”.
Gabcom- Enquanto especialista em Ecologia Aquática, como classifica o estado actual dos nossos rios?
Maria Ilhéu - Os nossos rios constituem um património natural, cultural e social de enorme valor que hoje parece esquecido e, por isso, negligenciado. A grande maioria dos rios Portugueses não se encontra em bom estado de conservação, hoje designado de bom estado ecológico, e muitos apresentam mesmo elevada degradação, causada sobretudo pela pressão da urbanização, indústria e agricultura. Com a implementação da lei da água, surgiu alguma esperança que os rios da Europa pudessem recuperar qualidade e ser alvo de ações de conservação ativa, no entanto as metas ambientais para atingir o bom estado das massas de água têm sido progressivamente adiadas e o resultado é não só a manutenção das condições de degradação mas também um visível agravamento geral da integridade de muitos ecossistemas ribeirinhos. Os rios hoje são vistos sobretudo como meros recursos de utilidade direta para as atividades produtivas humanas, sendo a sua exploração muitas vezes externalizada. As pessoas têm vivências cada vez mais distantes destes ecossistemas e mesmo que estejam em proximidade geográfica, muitas vezes (os ecossistemas ribeirinhos) estão invisíveis ao olhar, quer porque estão frequentemente aterrados, canalizados, ocultos, quer porque estão visualmente pouco dignificados em virtude da sua degradação. Os contextos rural e urbano apresentam diferentes fatores de ameaça e constrangimentos a estes ecossistemas, no entanto o cenário da indiferença ou mesmo “o virar costas”, repete-se indiferentemente do contexto sociogeográfico. As políticas para o resgate dos nossos rios e o investimento na sua aplicação são absolutamente decisivos, mas o envolvimento e comprometimento das pessoas, enquanto cidadãos são também imprescindíveis. As ações de conservação deverão envolver não só a reabilitação dos valores naturais como a perceção da sua importância do ponto de vista socio-cultural. É necessário desenvolver modelos de intervenção no território que permitam o resgate da consciência das ligações entre os humanos e o mundo natural.
Gabcom- Numa perspetiva mais global, como avalia a situação atual dos oceanos, nomeadamente “a questão dos plásticos”?
Maria Ilhéu - O problema dos plásticos nos oceanos na sua génese é exatamente o mesmo problema da degradação dos rios; vivemos, de modo geral, ainda sem consciência nem cultura ecológica.
No momento atual da nossa história, em que as taxas de consumo de recursos são exorbitantes e tudo acontece a uma escala industrial globalizada, perdeu-se a consciência da ligação entre a origem destes recursos e o seu fim de ciclo; a cadeia de produção está demasiado distante dos consumidores e o custo destes recursos tem externalizado o tempo de renovação dos mesmos, assim como as perdas ambientais. De modo geral, o estilo de vida do mundo globalizado, assente no modelo ocidental, valoriza muito pouco os ecossistemas de suporte à vida integral numa perspetiva ecocentrica. O conceito de desenvolvimento para muitas comunidades baseia-se apenas, ainda, no crescimento do consumo, no crescimento da economia à custa de mais recursos (naturais e sociais) e isso fatalmente representará mais plásticos nos oceanos, e menos biodiversidade no planeta terra.
Nota biográfica
Maria Ilhéu | Doutorada em Ecologia e Ambiente. É Professora Auxiliar do Departamento de Paisagem, Ambiente e Ordenamento da Universidade de Évora, e Investigadora do Instituto de Ciências Agrarias e Ambientais Mediterrânicas. Tem coordenado diversos projetos científicos na área da Conservação dos Ecossistemas Aquáticos e orientado teses de Mestrado e Doutoramento. É autora de um conjunto de publicações científicas no domínio da Ecologia de rios e da sua fauna. Nos últimos anos tem-se dedicado também a projetos interdisciplinares no âmbito da Educação para a Sustentabilidade, e da Reconciliação Ecológica com enfâse no resgate da ligação Humano-Natureza, de que são exemplo os projetos de investigação ação com comunidades académicas “HUMANO-NATUREZA: Experiência Educativa em Meio Natural” e “ID-NATURA : Património Natural é Património de Identidade” e ECOCRIATIVIDADE: uma estratégia de educação ambiental”.