Em 1884, o positivista português Teófilo Braga publicou um ensaio sobre a importância que as celebrações de centenários literários haviam adquirido na configuração das identidades políticas modernas. Escritores, obras consagradas no cânone nacional e movimentos literários formavam “sínteses afetivas” do ser nacional, que se expressavam no ritual cívico das comemorações. Estas, ao mesmo tempo, eram expressão das transformações contemporâneas que colocavam o foco na consagração da arte e da ciência como vetores de progresso e identificação das comunidades políticas. Esta teorização seguia uma série de ciclos comemorativos que se estenderam por toda a Europa e que usavam a literatura como fonte ou pretexto para celebrar o grupo nacional ou certas culturas políticas. Como destacou Joep Leerssen, a literatura oferecia um quadro cultural para a representação e divulgação dos caracteres nacionais. Estes autores e autoras, conceituados por Marijan Dovic e Jón Karl Helgason como “santos culturais”, assim como a articulação de uma narrativa que dividia as criações nacionais em períodos de esplendor e decadência, foram parte fundamental dos processos de nacionalização. Estes não apenas dependiam da ação nacionalizadora do Estado, mas também envolviam múltiplos agentes sociais, entre os quais se destacavam os relacionados com o mundo das letras. A importância desses focos literários residia no fato de que os autores celebrados representavam, na chave de Herder, o espírito nacional que emanava de suas obras. Contar com nomes na literatura universal também servia, no âmbito do nacionalismo, para demonstrar de forma inequívoca a existência do ser nacional. Mas os usos das memórias literárias, se quisessem gerar essa “síntese afetiva” entre a comunidade nacional, não podiam se limitar a tratados literários e discussões na imprensa. Era necessário expressar no espaço público e sob a forma de liturgias cívicas - herdeiras da pompa e encenação ritual religiosa - a continuidade dos valores nacionais que eles representavam. Estas comemorações, bem articuladas pelo Estado, por associações literárias ou grupos sociais, pretendiam gerar um horizonte cognitivo extensível ao coletivo, no qual fosse apresentada de forma encenada uma versão oficial do passado e da história literária nacional. Além da importância nos processos de nacionalização, a seleção do cânone nacional e de seus autores e autoras mais destacados representava ao mesmo tempo uma decisão política e um posicionamento historicista perante determinados debates que ocorriam no horizonte das culturas políticas. Assim, a própria escolha dos personagens comemorados se enquadra nas lutas culturais para definir os traços ideológicos distintivos da comunidade: mais ou menos religiosa, mais ou menos liberal, etc. Da mesma forma, os centenários vinham acompanhados de uma intensa ressignificação historicista de literatos e obras: reedições, monografias ou concursos literários nos quais se aproveitava a efeméride para politizar os personagens de forma anacrônica e identificá-los com determinados projetos políticos. Podemos até dizer que cada centenário gerou seu contra-centenário, lutando politicamente para destacar determinados nomes, períodos históricos ou gerações literárias. Não há dúvida de que a memória literária desempenhou um papel determinante na configuração das identidades e das culturas políticas contemporâneas, conforme constatado nas últimas décadas no campo dos estudos literários e culturais.
Temas
I. O poder da literatura - e suas comemorações - nas identidades e na política
II. Os centenários e a ritualização da literatura
III. Autores e gerações e seus usos políticos
IV. A literatura no espaço público: hegemonia cultural e legitimidade política
Coordenadores
Antonio Sáez Delgado (U. Évora)
César Rina (UNED)
Equipa de investigadores
César Rina (UNED)
Santi Pérez Isasi (U. Lisboa) (historiografía)
Bernat Padró (U. Barcelona)
Mercedes Comellas (U. Sevilla)
Xaquín Núñez (Universidade do Minho)
Jesús Revelles (U. Islas Baleares)
Guadalupe Nieto (U. Extremadura)
Jordi Cerdà (U. Autònoma de Barcelona)
Mónica Burguera (UNED)
Jon Kortazar (U. País Vasco)
Maria Zozaya (U. Évora)
Iolanda Ogando (U. Extremadura)